#179 – Comida Frankenstein e a ética na ciência
ago 15, 2024

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Você já ouviu falar na Comida Frankenstein? Ela faz referência ao nome de um dos monstros mais conhecidos da ficção científica e traz consigo inúmeros debates. Neste episódio, Lívia Pereira e Lidia Torres falam sobre a ética científica instigada pela ficção científica e as problemáticas que envolvem as técnicas de obtenção dos Organismo Geneticamente Modificados, mais especificamente os alimentos transgênicos, ou como já foram denominados no passado, os Frankenfoods ou Comidas Frankenstein. Você vai escutar entrevistas com Vânia Massabni, professora da ESALQ – USP/Piracicaba, coordenadora da pós-graduação em Ecologia Aplicada e coordenadora do grupo de pesquisa e extensão GEDePE (Grupo de Estudos Desafios da Prática Educativa), onde trabalha com temas ligados a parte ambiental conectados ao ensino de ciências. E também vai ouvir a Suzi Cavalli, doutora em Alimentos e Nutrição pela UNICAMP e docente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a nutricionista, socióloga da alimentação e professora na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Elaine de Azevedo, que também é produtora do podcast “Panela de Impressão”. Elas vão nos contar como o livro Frankenstein desperta o debate para ética na ciência, porque ele emprestou seu nome aos alimentos transgênicos e quais são os debates que envolvem os OGMs, 30 anos depois da sua criação.

[sons de tempestade]

Narrador (Daniel Rangel): “Foi numa lúgubre noite de novembro que contemplei a conquista de meus pesados trabalhos. Com uma ansiedade que era quase agonia, coletei os instrumentos da vida ao meu redor, para que pudesse infundir uma centelha na coisa inanimada aos meus pés. Já era uma da manhã; a chuva batia melancolicamente contra as vidraças e minha vela fora quase toda consumida, quando, sob a luz débil, vi o torpe olho amarelo da criatura se abrir, ela respirou fundo, e um movimento convulsivo agitou seus membros” (Shelley, 2017, p.65).

Lívia: Esse trecho que você acabou de ouvir foi o relato do personagem Victor Frankenstein, o cientista que é protagonista de um dos livros mais famosos do século XIX. Você provavelmente já leu ou ouviu falar, porque ele ganhou diversas releituras em filmes e desenhos animados. Também aparece em propagandas e em produtos por aí. De peças de teatro a fantasias de carnaval, de filmes e músicas a jogos e histórias em quadrinhos, a lista de menções ao universo do livro e do personagem Frankenstein é inesgotável. Escrito por Mary Shelley, publicado em 1818, quando a autora tinha apenas 20 anos, o romance adquiriu status de clássico da literatura e se disseminou pela cultura popular mundo afora. O trecho que você ouviu conta exatamente o momento em que Victor Frankenstein dá vida a um corpo inanimado, que ele construiu com pedaços de outros corpos, de pessoas que já estavam mortas. 

Lidia: Esse fato narrado no livro é um dos motivos dele ser considerado a primeira obra de ficção científica da literatura ocidental. Mary Shelley ousou contar uma história que descrevia a possibilidade de criar vida por meio de princípios científicos e não mais sobrenaturais, como era de costume até então.

Lívia: O livro discute as principais questões da segunda revolução científica, que marcou sua época. As tensões científicas que estavam fervilhando tiveram grande impacto na narrativa. Foi um momento, na história da humanidade, de intensas mudanças no entendimento do homem e da natureza. 

Lidia: Os novos conhecimentos científicos pareciam achados fantásticos, como os estudos de Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, que desafiava a visão tradicional da criação divina da vida. Outro exemplo são os achados de Luigi Galvani, com seus experimentos em bioeletricidade, que procuravam estabelecer uma relação entre a corrente elétrica e o impulso nervoso que causa a contração muscular. As descobertas de Galvani levaram à construção da Pilha Voltaica e marcaram a evolução dos estudos sobre magnetismo e eletricidade.

Narrador: “Ascendem aos céus: descobriram poderes novos e quase ilimitados; podem comandar os trovões do céu, imitar o terremoto e até escarnecer do mundo invisível com suas próprias sombras” (p.56) “Após dias e noites de incrível labuta e fadiga, descobri a causa da geração da vida; mais do que isso, tornei-me capaz de animar matéria sem vida” (Shelley, 2017, p.60).

[Vinheta Oxigênio]

Lidia: Como a gente comentou, a originalidade do livro está, exatamente, nessas descrições dos progressos científicos da época, diante das indagações fundamentais sobre a vida e a sociedade. A ficção científica construída por Mary Shelley foi relevante para as discussões que estavam quentes na sociedade inglesa do século XIX, mas que reverberam ainda hoje em questões importantes da atualidade: o desejo humano em transcender os limites da natureza por meio da ciência e, ao mesmo tempo, ainda ter de lidar com o diferente ou o inimaginado. 

Lidia: Eu sou a Lidia Torres, aluna do curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor.

Lívia: Eu sou a Lívia Pereira, também aluna da Especialização no Labjor. Neste episódio do Oxigênio vamos apresentar um projeto, comandado pelas professoras Vânia Massabni e Raquel Rodrigues, da ESALQ – USP Piracicaba, que levou a leitura de ficção científica para as aulas de biologia de uma turma do ensino médio. A professora Vânia conversou com a gente e contou um pouco dessa experiência de ética na ciência com os jovens, a partir do livro Frankenstein

/Lívia: Neste episódio também vamos falar sobre a ética nas pesquisas ligadas à engenharia genética, principalmente nas pesquisas de recombinação gênica relacionadas com os Organismos Geneticamente Modificados, conhecidos como OGMs. Nossos entrevistados vão apresentar um panorama dos atores envolvidos no processo de desenvolvimento e de consumo dos alimentos transgênicos e nos ajudar a responder à pergunta instigada pela narrativa da ficção científica: Será que aqueles questionamentos sobre a ética na ciência iniciados lá no século XIX e levantados pela Mary Shelley no livro ainda reverberam nos dias de hoje? De lá pra cá nós avançamos enormemente nas técnicas científicas, mas será que já superamos os problemas que envolvem a ética na ciência? Será que hoje em dia levamos em consideração o limite dos usos da ciência diante de seus efeitos na sociedade?

[música de transição]

Vânia Massabni: “Frankenstein é uma obra que inaugura o gênero de ficção científica, eu vim entender isso também com esse trabalho. Então, quando a Raquel trouxe a ideia eu falei: bom, dos temas eu acho que é o que mais me atrai, porque ele também tem uma ligação grande com biologia. Se pensássemos por exemplo em 2001: uma Odisseia no espaço, talvez desse para discutir mais física, mas eu procurei a ideia de você ter um monstro e esse monstro flerta com terror e tem uma parte social do monstro, que não é aceito. O que se espera, por que ele é monstro, na verdade, ele é diferente, porque ele foi feito de partes, de pessoas mortas? Então, isso causou muita comoção entre os alunos e a gente teve que explicar que isso não era nem ético ser feito, mas era uma discussão ali, uma discussão ética.

Lidia: Essa é a Vânia Massabni, a professora que orientou a Raquel Rodrigues no projeto de leitura de ficção científica em sala de aula. Desde 2020 ela coordena a pós-graduação em Ecologia Aplicada e seu grupo de pesquisa trabalha com temas ligados a parte ambiental, conectados ao ensino de ciências. Como ela apontou, a articulação entre a realidade científica e a imaginação dada pela ficção abre portas para reflexões acerca do impacto da ciência em nossas vidas. Um bom exemplo dos avanços no campo da biologia, como a gente já comentou, são os estudos ligados à engenharia genética, que envolvem técnicas de manipulação do DNA em laboratório. Essa tecnologia avançou muito na passagem do século XX para o século XXI. A clonagem e a transgenia deixaram de ser uma prática que só existia na ficção para ser uma realidade dos métodos e das práticas científicas.

Vânia Massabni: Então, até onde pode ir o cientista, que no caso chamava Victor Frankenstein. O Frankenstein é o cientista ali. Até onde ele pode ir? O que ele está extrapolando e está fazendo as vezes de, entre aspas, “Deus”, que seria dar a vida ao novo ser. E essa vida a partir dos seus conhecimentos. O Victor Frankenstein, a hora que ele vai fazer as suas tentativas e montar o monstro, ele tá sempre escondido, ele é quase que um vilão da história, porque depois ele não aceita esse monstro. Então, quem é cientista que ora é Deus, ora é o inverso de Deus? Ele é Deus a hora que ele cria, mas ele deixa de ser absolutamente Deus a hora que ele rejeita o que ele criou e não cuida e não zela e não é o pai esperado pelo monstro. Então, que ser humano é esse afinal?

Narrador: “Quem pode conceber os horrores de minha labuta secreta, enquanto eu chafurdava na terra profana dos túmulos ou torturava animais vivos para animar o barro sem vida? Meus membros agora tremem e meus olhos se afogam com as lembranças; mas, na ocasião, um impulso irresistível e quase frenético me incitava a seguir em frente; eu parecia ter perdido toda a alma e a sensação, a não ser pelo desejo de seguir com essa busca” (Shelley, 2017, p.62).

Lívia: As professoras trabalharam com os alunos o tema da manipulação da vida por meio dos organismos geneticamente modificados, como um exemplo prático dos limites da ética científica e suas implicações na sociedade. A atividade chamou atenção para as tecnologias de manipulação genética disponíveis na atualidade e como essa prática é utilizada na criação dos alimentos denominados transgênicos. Foram distribuídas reportagens sobre o assunto entre os alunos e uma delas citava a “Comida Frankenstein”, termo que era bastante utilizado no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 para se referir a esses tipos de alimentos.

Vânia Massabni: A gente distribuiu ali uma coletânea de notícias com reportagens e uma delas era com a manchete “Comida Frankenstein”. Essa comida geneticamente modificada, já tá aí o termo “em uso”, do “Frankenstein”. Nesse contra ou a favor dos transgênicos, a gente teve alguns favoráveis, outros não. Mas, principalmente eles colocaram argumentos. E aí que tá, né? Essa prerrogativa do ensino de ciências ajuda a desenvolver a argumentação dos alunos, mas a argumentação embasada. 

Lidia: A experiência didática relatada pela Vânia nos chama atenção para a importância de levar os debates da ética na ciência para fora dos muros da universidade. Muitas pesquisas sobre as consequências do consumo de transgênicos são realizadas desde que eles se tornaram realidade há trinta anos. O primeiro produto vindo dessa tecnologia, um tomate modificado para retardar o amadurecimento pós-colheita, chegou aos supermercados em 1994. 

Suzi Cavalli: A relação do termo “Frankenfood”, eu acho que ele vem num linear que quando entra os organismos geneticamente modificados, os OGMS ou transgênicos, eles dão um susto, assim, no sentido que eles não são uma biotecnologia ligada a um processo.

Lívia: Essa que você ouviu é a professora Suzi Cavalli, doutora em Alimentos e Nutrição pela UNICAMP e docente na Universidade Federal de Santa Catarina. A Suzi tem desenvolvido pesquisas sobre a utilização dos transgênicos e contou pra gente sobre o resultado dessas pesquisas, mas primeiro ela nos deu um panorama sobre o termo “Comida Frankenstein”.

Suzi Cavalli: Então, não se sabia o que ia acontecer em relação a esses novos produtos e imaginava também que, como você mexe com a genética em si, com genes diferentes, você literalmente tá mexendo com a vida. Então, dentro desse pressuposto, imagina que tu ia criar um Frankenstein, dentro dessa ligação com o personagem do livro. Porque você não tinha uma dimensão do que isso poderia estar ocorrendo. Onde você faz esse processo todo. 

Lidia: Bom, mas afinal de contas o que são esses organismos geneticamente modificados? De uma forma bem geral, os primeiros organismos geneticamente modificados surgiram a partir de combinações das técnicas de biotecnologia e engenharia genética nos anos 1970. Essa combinação de técnicas permitiu que os cientistas fizessem a inserção de genes de um organismo em outro, o que dava novas características ao organismo receptor.
Todo este cenário de efervescência de novas descobertas científicas veio junto também com um grande debate político e social. Quais as consequências para a saúde da população mundial sobre o consumo desses novos organismos geneticamente modificados? Qual o custo para a produção? Como ficam os pequenos produtores diante deste contexto? Este cenário todo, juntamente com a ideia de que os cientistas estavam criando um novo organismo, fez com que parte de cientistas indagassem a ética e a política na criação dos OGMs, e é aí que entra a relação com o termo “Comida Frankenstein”, ligando todo este contexto ao livro da Mary Shelley.

Lívia: Ainda sobre o termo “Frankenfood” ou “Comida Frankenstein”, a professora Suzi lembrou que essa terminologia parou de ser utilizada em meados de 2014. Uma suposição para a queda do uso desse termo estaria conectada com a relação política que ele acarretava, ou seja, o termo impactava no consumo do produto, afetando a maneira como as pessoas viam aquele alimento, pois faziam uma associação com a ideia de monstro. Mesmo com as ressalvas de parte da população, os alimentos transgênicos continuaram disponíveis e com cada vez mais apoio das grandes empresas, o que facilitou a disseminação tanto das técnicas, quanto da produção desses organismos, fazendo com que o consumo dos transgênicos se popularizassem no cenário mundial. Mas hoje, quase 40 anos depois do surgimento das primeiras plantas transgênicas, qual é o contexto do Brasil? 

Suzi Cavalli: A gente, por exemplo, tem em torno de 95% de lavouras de soja só com sementes transgênicas. Então, dá para dizer que praticamente tudo que a gente consumir, que tenha um ingrediente derivado da soja, não é mais convencional, que seria aquele que usa agrotóxicos, mas não é orgânico. Então, pra gente se livrar da soja transgênica, só se utilizar soja orgânica hoje. 

Lidia: Como a professora Suzi falou, o cenário atual do Brasil é da transformação do solo do que um dia foram campos e florestas, em terras para a produção de commodities, que são os produtos de origem agropecuária produzidos em larga escala e destinados ao comércio externo. 

Suzi Cavalli: A gente também percebe muito claramente a ligação entre o agrotóxico e o transgênico. Porque todo o transgênico que a gente tem no Brasil, ele tá ligado a um processo que é bom para o produtor, para empresa que tá vendendo, e muitas vezes vendendo casado. Quando começou com a Monsanto, a soja RR tinha o seu componente ligado a isso, então ela vendia um combo, vendia as duas coisas, esse é um lado econômico também, quer dizer, o agricultor comprava soja e teria que comprar o outro produto.

Lívia: A professora citou a soja RR e a Monsanto. A Monsanto é uma empresa multinacional líder na produção de sementes geneticamente modificadas e também na produção do herbicida glifosato. Em 2016 ela foi adquirida pelo grupo Bayer, em uma das maiores fusões de grandes empresas da história da Alemanha. A soja RR foi uma das primeiras sementes geneticamente modificadas a serem desenvolvidas. O gene inserido nessa semente produz uma proteína que torna a planta resistente ao herbicida glifosato.

Lidia: Existe uma relação econômica entre as empresas que atuam na produção dos transgênicos com a utilização de agrotóxicos. Segundo um estudo de 2022, as áreas destinadas à sojicultura no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e na Argentina, os países agrícolas do Mercosul, somadas ocupam aproximadamente 557 mil quilômetros quadrados, o que é maior que o território da França. Só o Brasil abriga uma área equivalente à Alemanha (em torno de 358 quilômetros quadrados) para o cultivo de soja geneticamente modificada. Esse dado gera uma ligação direta da produção transgênica com o uso de agrotóxicos. Isso porque praticamente 90% dos agrotóxicos que circulam no Brasil são aplicados em cinco tipos de culturas: soja, milho, algodão, pasto e cana-de-açúcar, sendo que a soja transgênica, que tem por característica a maior resistência aos diversos tipos de agrotóxicos ocupam aproximadamente 56,9 milhões de hectares. Segundo estudo do marco da safra de 2022/2023 de grãos no Brasil, 25 anos depois da primeira aprovação do cultivo de transgênicos, o país está na segunda posição do ranking de países que mais utilizam transgênicos nas lavouras.

[trilha transição]

Lívia: A nossa última entrevistada, a nutricionista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo, Elaine de Azevedo, nos contou quais são os atores que agem nessa arena de riscos ligada aos transgênicos e agrotóxicos no Brasil. Ela fez uma análise a partir dos estudos sociológicos, mostrando como a relação de poderes é complexa e como diferentes atores contribuíram para a liberação dos transgênicos sem muitos obstáculos em nosso país.

Elaine de Azevedo: Então, nessas colisões a gente tem os protagonistas de risco, nesse caso as empresas de biotecnologia, e a mais forte de todas era a Monsanto, e também, no Brasil, podemos falar das associações dos grandes produtores de monoculturas para exportação, o chamado agronegócio, que junto com essas empresas se formam, assim, uma instituição patrocinadora que desejava sempre conferir legitimidade e endossar os transgênicos. São os protagonistas mesmo do teatro. 

Lívia: Ou seja, é quem está mandando e criando as regras do jogo até agora.

Elaine de Azevedo: Temos também os portadores dos riscos, nesse caso as vítimas, os leigos, que sentem os custos dos riscos através das nossas enfermidades. Porque essa relação não foi exatamente bem-feita e os estudos sobre alimentação e impacto de contaminantes químicos merecem estudos de longo prazo, que não são realizados no Brasil e pouquíssimos no mundo. 

Lívia: Enquanto não há incentivo ou disseminação destes estudos, fica cada vez mais complexo mostrar a relação entre o adoecimento de pessoas e o uso de agrotóxicos.

Elaine de Azevedo: Tem também os pequenos agricultores, que são portadores de riscos, que tiveram suas culturas contaminadas ou aqueles que não conseguiram manter o pacote químico do transgênico, e, tiveram então um impacto socioeconômico e até largaram a produção, porque não conseguiam manter as suas terras. 

Lidia: Sobre esse impacto, apontado pela Elaine o que ocorre é que os pequenos produtores não conseguem acompanhar os custos do uso de plantas transgênicas. Além da tecnologia em si exigir um investimento alto, a manutenção da produção impõe o acompanhamento de legislações, regularização das terras e dos produtos, que envolve custos e burocracia. Isso leva a muitos produtores menores a desistir da atividade e vender suas terras, assim a concentração de terras acaba ficando na mão das grandes multinacionais. A partir de dados de 2020, disponibilizados pelo IBGE, vemos que apenas 1% dos proprietários rurais controlam praticamente 47,6% das terras agricultáveis do país. Esse é o grande problema da formação social e territorial do Brasil, que é a centralidade da propriedade privada e da concentração fundiária. Dados mais específicos sobre esse assunto podem ser consultados no livro Agrotóxicos e colonialismo químico, da Larissa Bombardi, lançado no ano passado. 

Elaine de Azevedo: Outro elemento nessa arena é a chamada autoridade científica, que vai agir em nome da ciência. No caso dos transgênicos, essa ciência vai validar ou refutar os riscos e os mais fortes, favoráveis aos transgênicos, foram aqueles representados pelos cientistas contratados pelas empresas de biotecnologia. Então, eles fazem pesquisa a favor e também tinham os cientistas contra que questionaram os riscos e eram os cientistas basicamente independentes ou que trabalhavam para instituições de pesquisas públicas, como no caso das Universidades. Os dois tinham argumento científicos, mas a ciência de cada um tinha objetivos bem diferentes.

Lívia: Os estudos mais atuais apontam que a área destinada às plantações de commodities ligadas às sementes transgênicas só cresce, enquanto o espaço das agriculturas que realmente alimentam a população vem sendo reduzido ano a ano. O Brasil é um país que comemora safras recordes e está entre os maiores produtores agrícolas do mundo, mas ainda convive com a fome. E o mais paradoxal é que a zona rural é a área mais afetada, tendo um índice de 12% de fome severa, segundo o último Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar da Rede Penssan. 

Lidia: As análises dos dados e dos fatos mostram que estamos diante de uma severa contaminação ambiental e humana e convivemos com a fome e a desnutrição. A maior parte da produção agrícola deixou de ser sinônimo de produção de alimentos e passou a ser um negócio lucrativo, concentrado nas mãos de empresas transnacionais, proprietários e especuladores. Esses são os atores principais nesse cenário que a professora Elaine citou e que são apoiados por seus representantes nas câmaras legislativas e nos palácios do governo. 

Lívia: Resumindo, as tecnologias ligadas à criação de Organismos Geneticamente Modificados dizem muito mais sobre uma economia internacional, que subordinou globalmente a terra e a agricultura à indústria e aos bancos, do que serviu para a alimentar a população. 

[trilha sonora – transição]

Narrador: “Num surto louco de entusiasmo, dei vida a uma criatura racional e devia ter assegurado a ela, no que estivesse ao meu alcance, sua felicidade e bem-estar. Esse era meu dever. […]. As formas dos meus amados mortos flutuam diante de mim, e me apresso para seus braços. Busque alegria na tranquilidade e evite ambições, mesmo que sob a aparente inocência de se distinguir na ciência e nas descobertas. Mas por que digo isso? Fui destruído por essas esperanças, mas outro pode ter sucesso” (Shelley, 2017, p. 227).

Lívia: Essas palavras de Vitor Frankenstein nos fazem voltar para aquelas perguntas que fizemos no começo do episódio: qual a relação da ciência com as consequências de seus atos na sociedade? Isso inclui suas relações não somente científicas, mas políticas e culturais. A professora Elaine, que já falou um pouco sobre a relação da ciência com as indústrias no caso dos Organismos Geneticamente Modificados, vai explicar melhor para nós quais são os desdobramentos dessas relações.

Elaine de Azevedo: A nutricionista Marion Nestlê revela em suas publicações esses vários interesses de pesquisa de especialistas dentro das universidades, com seus vínculos com empresas patrocinadoras de tais estudos, que lhes convém. Quando a ciência e os cientistas percebidos tradicionalmente como neutros são colocados dentro de uma disputa e isso, então, se caracteriza como um processo de politização da ciência. E também pode acontecer uma cientificização da política, ou seja, de se utilizar dela com interesses políticos. As empresas agroalimentares sabem muito bem que a melhor estratégia de marketing para o produto alimentar é ter um parecer científico sobre saúde. Por isso muitas pesquisas são realizadas com financiamento de instituições públicas e seus cientistas e as indústrias também apoiam financeiramente tais pesquisas. É bom dizer que nem sempre esse apoio significa estudos manipulados, mas quando uma corporação, cujo único objetivo é lucro, financia a ciência, então tem mais chance de se enfatizar os efeitos favoráveis aos interesses dessas empresas e provavelmente os resultados negativos tendem ser ignoradas em prol desse lucro. 

Lidia: Sabemos que as consequências dessas práticas científicas para a sociedade, para além da discussão ética na ciência, que deve ser questionada, reflete na saúde da população, que muitas vezes não tem informação suficiente e sofre com os sistemas de saúde, que estão sobrecarregados. Então, a questão é que as pesquisas científicas antiéticas endossam um sistema que adoece e piora a qualidade de vida de parte da população. O esquecimento dos fatores de riscos ligados aos alimentos transgênicos pela mídia e o silenciamento dos agentes que poderiam alertar a sociedade sobre essa problemática acabam isentando os responsáveis dessa realidade. 

Elaine de Azevedo: Então, resumindo, as controvérsias de pesquisa com transgênicos foram permeadas por interesses políticos, econômicos, os componentes sociais, éticos, por divisões científicas, institucionais, políticas, como eu falei já, e transnacionais, porque teve pressão de outros países para liberar aqui. O que aconteceu é que o tema foi colocado numa caixa preta da ciência por parte da coalizão vencedora e mais poderosa desse debate, que a gente já sabe quem é, né? Então, as instituições que se posicionaram a favor da liberação da semente geneticamente modificadas formaram alianças mais articuladas e foram capazes de promover a liberação oficial do plantio da comercialização e essa colisão, ela classificou as posições contrárias aos transgênicos como ideológicas e as suas próprias como científicas. Então, assim se encerraram os debates e o Frankenfood foi enterrado, mas como todo Frankenfood, ele continua vivo. Porque os riscos não foram dissipados, foram esquecidos.

Lívia: Diante desse cenário, que não parece ser muito animador, nós nos perguntamos quais seriam os caminhos para achar soluções. No campo da engenharia de bioprocessos e biotecnologia, os pesquisadores têm realizado uma nova técnica de edição genética, denominada de Técnica de Melhoramento de Precisão (Timp), gerando produtos que não estão sendo considerados mais como transgênicos e por isso estariam dispensados de todas as etapas de liberação previstas na Lei Nacional de Biossegurança. Há várias técnicas de edição genéticas disponíveis, elas consistem em cortar o DNA em um ponto específico. No Brasil, o mais utilizado tem sido o método CRISPR, que foi aplicado em uma espécie de soja desenvolvida na Embrapa. Nesse caso, os pesquisadores silenciaram o gene, ao cortar o DNA em um ponto específico e tornaram essa variedade de semente resistente à seca. 

Lidia: As técnicas de edição gênica são a promessa da vez, mas as coisas não são tão simples assim. Os produtos gerados por ela também precisam ser regulamentados, pois não possuem um histórico de segurança, por ser ainda uma técnica nova. Os pesquisadores não têm todos os dados sobre os possíveis efeitos colaterais, como quando surgiu a técnica que gerou os OGMs. A alteração genética da técnica CRISPR, apesar de ser pontual, pode também influenciar em outros aspectos que não sabemos quais são. Além de um possível efeito adverso dessas variedades na interação com os diferentes seres vivos no meio ambiente, essa técnica ainda continua com a lógica de concentração de patentes na mão de poucas empresas, como também aconteceu com as sementes transgênicas. Portanto, esse ainda é um modelo que historicamente gera fortuna para poucos e torna os agricultores dependentes das grandes corporações. Então, onde fica a ética científica nessa história? Ela acaba sendo barrada pela mediação de grandes corporações?

Elaine de Azevedo: Eu acho que a ética científica é de alguma forma barrada pela própria estrutura da ciência e que foi de alguma forma romantizada por nós essa estrutura, ela é barrada também pela falta de reconhecimento que cientistas são seres humanos que desejam financiamento, poder e reconhecimento e que agem de acordo com seus valores humanos, que são bem variados, como a gente sabe. 

Lívia: Então, não adianta a gente pensar que a próxima técnica de edição gênica vai resolver todos os nossos problemas. Nós temos que questionar qual será o comprometimento dos cientistas com um projeto de agricultura e de alimentação mais justa, socialmente e ambientalmente engajadas. Eles vão ficar do lado das empresas, que pagam e financiam suas pesquisas ou vão se posicionar ao lado dos menos favorecidos? 

Lidia: Nossa entrevistada ressalta que uma das preocupações da sociologia do conhecimento é enfatizar a relação entre o conhecimento científico e a ordem social, para dessacralizar a imagem da ciência. Os autores dessa área mostram que o conhecimento científico é um sistema de convenções socialmente estabelecido e reproduzido.

Elaine de Azevedo: O cientista, como qualquer outro ator social, é alguém que se utiliza de estratégias persuasivas pra garantir a aceitação dos seus enunciados, e também pra garantir o financiamento pra ele continuar produzir. Então, a imagem dos cientistas ainda é relacionada a pessoas discretas, silenciosas, mas a pesquisa científica é altamente competitiva, compete por atenção, por reconhecimento e por financiamento. 

Narrador: “Aprenda comigo – se não por meus preceitos, ao menos pelo meu exemplo – quão perigosa é a aquisição de conhecimento e quão mais feliz é o homem que crê que sua vila natal é o mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza permite” (Shelley, 2017, p.61). 

Lívia: Na obra de Mary Shelley, o cientista Victor Frankenstein, ao se deparar com a sua criação, o monstro sem nome, é tomado pelo horror e foge, rejeitando o resultado do seu trabalho. A criatura, ao se sentir rejeitada por seu criador e pela sociedade, se torna violenta, causando a morte de várias pessoas próximas ao cientista. Podemos dizer que a obra funciona como uma fábula moderna dos riscos do orgulho intelectual desmedido. O cientista protagonista do livro representa uma ciência egoísta, que desafia a natureza, sem se preocupar ou se responsabilizar pelas possíveis consequências. De maneira mais ampla, essa fabulação nos chama a atenção para os impactos do progresso científico na sociedade e a responsabilidade dos cientistas diante de suas criações. 

Lidia: A relação do cientista com sua criação monstruosa, feita a partir de restos mortais, inspirou a denominação do termo Frankenfood, quando os alimentos transformados geneticamente começaram a fazer parte do nosso dia a dia. Se fizermos uma relação com a história do livro, então, qual será o destino dos alimentos transgênicos, se considerados também como uma criação da ciência que precisa de alguma maneira ser guiada e não deveria ser abandonada, como foi o monstro criado por Victor Frankenstein? 

[trilha de transição]

Lívia: Bom, neste episódio a gente apresentou o que tem guiado o desenvolvimento dos Organismos Geneticamente Modificados no Brasil, e vimos que ele tem acompanhado, em sua maioria, as demandas das grandes empresas e dos grandes produtores. No atual cenário, a ética científica e a responsabilidade dos cientistas por esses produtos parecem ter ficado um pouco pra trás. Diante de todos os dados que mostramos e que tem permeado o contexto da utilização das técnicas científicas para a obtenção dos alimentos transgênicos, vimos que ainda não há, por parte da ciência, uma busca expressiva por modos de produção mais saudáveis, que garantam os cuidados com o ambiente, com a saúde do consumidor e, principalmente com o acesso de comida pra todas as populações.

Lidia:  Por isso esse debate é tão importante. A literatura tem o poder de nos fazer vivenciar, no mundo ficcional, possibilidades inimagináveis, e assim despertar nosso senso crítico diante da realidade. A ficção científica de Frankenstein continua nos instigando a não perder de vista as preocupações relacionadas aos possíveis impactos do progresso científico na sociedade.

[corta trilha]

Lívia: Esse episódio foi produzido, roteirizado e apresentado por mim, Lívia Pereira.

Lidia: E por mim, Lidia Torres. A revisão é de Mayra Trinca e Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. O material foi gerado como trabalho da disciplina “Teorias e Métodos da Ciência” e também contou com a participação da aluna e jornalista Mariana Ribeiro. A disciplina foi ministrada pelas professoras Flávia Consoni e Janaína da Costa e o estagiário Alisson Silva, no curso de Especialização em Jornalismo Científico do Labjor/Unicamp. 

Lívia: Os trabalhos técnicos são de Daniel Rangel e as trilhas sonoras do Free Sound. 

Lívia: O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. 

Lidia: Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e também na sua plataforma de podcasts preferida. Procure a gente nas redes sociais. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio e obrigado por escutar!

Lívia: O Oxigênio já tratou desse tema dos transgênicos no episódio 72, quando falamos sobre os 20 anos de pesquisas com transgênicos no Brasil e também no especial da Semana de Ciência e Tecnologia de 2016, quando entrevistamos a pesquisadora Marcia Tait, que falou sobre o papel das mulheres na agroecologia e a resistência delas aos cultivos transgênicos. Ouça lá depois.

 

Referências Bibliográficas

BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Elefante, 2023.
“Estrutura Fundiária”. In: IBGE, Atlas do espaço rural brasileiro, 2 ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2020.
OLIVEIRA, Sophia Sartini Fernandes de. O império dos simulacros e a comida “Frankenstein”… tem “gosto”, “cheiro” e “cor” de fruta, mas não é fruta –  uma perspectiva antropológica dos sentidos do ato de se alimentar. Interlocução de saberes na antropologia 2. Org. Willian Douglas Guilherme. Ponta Grossa, PR: Atena, 2020.
RODRIGUES, Raquel Mayne; MASSABNI, Vânia Galindo. Frankenstein: leituras de ficção científica em aulas de biologia. Experiências em Ensino de Ciências, v.17, n.3, 2022.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. Trad. Santiago Nazarian; Bruno Gamvarotto. Rio de Janeiro: Zahar, 2017 [1818, 1831].
“2022 Overview of Globally Registered, Launched  Pesticides and Analysis of High-Value and High-Potential Product Varieties”, AgNews, 16 mar. 2023.

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Meu divã interior (episódio 1)

Meu divã interior (episódio 1)

Este é o primeiro episódio de Meu divã interior, um romance radiofônico realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Você vai conhecer Fabiano, alguém em constante procura de um amor que ainda não encontrou e que segue atravessado pela angústia de uma persistente insônia.