#176 – Ecologia do reparo: a produção tecnológica no Santa Ifigênia, parte 1.
maio 16, 2024

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Santa Ifigênia, bairro central da capital paulista, conhecido pelo comércio de componentes e produtos eletrônicos, é também um lugar de reparos desses produtos. Neste episódio produzido e apresentado por Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, o bairro é o protagonista.  Quem vai falar sobre ele, tratar das atividades que ali são desenvolvidas é a antropóloga portuguesa Liliana Gil, que desenvolve sua pesquisa sobre o Santa Ifigênia na universidade Ohio State, nos Estados Unidos. Liliana conta também como foi a escolha sobre seu objeto de estudo e quais são os resultados encontrados até agora. Este é a primeira de duas partes da história. Acompanhe por aqui.

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Roteiro

[ sons urbanos caóticos aumentam progressivamente]

LILIANA: É um caos, não é? Carros, vendedores de bolo, facas, lojas de eletrônicos, muitos CCTV, sistemas de segurança, vários moços meio que te chamando pra comprar isto e ver aquilo, cê tá interessado nisto? 

[ som de caos urbano continua por um instante e depois um fade out até eu começar a falar ] 

YAMA: A voz que você escutou é da antropóloga portuguesa Liliana Gil e ela tá falando sobre o Santa Ifigênia, bairro central da capital paulista. 

Eu  sou Yama Chiodi, jornalista do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, e este episódio é mais uma parceria do GEICT com o Oxigênio. 

[ vinheta oxigênio]

[começa a tocar Bio Unit ]

O Santa Ifigênia é um bairro antigo, que vem desde o século XIX, e já mudou muito ao longo do tempo. Mas é pelo menos desde a década de 70 do século XX um pólo de venda de produtos e componentes eletrônicos… e também de reparo. De acordo com o Portal da Santa Ifigênia, catálogo online dos comércios da região, são mais de mil lojas. A maioria delas na rua de mesmo nome. O bairro é uma referência internacional. Antigamente seu público era bastante técnico porque supria uma demanda bem mais específica. Profissionais de vários ramos iam até lá em busca de componentes para a construção e manutenção de máquinas e aparelhos elétricos e eletrônicos. Isso ainda acontece hoje, mas seu público se diversificou muito.    Hoje a maior parte dos frequentadores do bairro são consumidores finais em busca de fones, tablets, celulares e outros produtos com preços bem mais baratos. Os produtos são de fontes e qualidades variadas. Há produtos originais importados legalmente como em qualquer loja da cidade, mas há também produtos contrabandeados e falsificados. Iphones de todas as idades e produtos sem marca importados da China. Mas além de tudo, é isso é frequentemente invisibilizado, há vendedores capacitados a ajudar as pessoas a resolver seus problemas tecnológicos dentro de suas possibilidades financeiras. 

Você deve se lembrar de um episódio relativamente recente em que o deputado federal e polemista Celso Russomanno visitou o bairro, causando confusão e gerando memes. 

[Que correção monetária, aqui é Santa Ifigênia, paizão]. Reportagem completa disponível no canal de Celso Russomanno, no link: https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4

A reportagem de Russomanno reforçou um estereótipo classista do bairro, muito difundido entre parte da classe média e entre as elites paulistanas. As contradições características dos comércios de centro estão lá: por um lado, uma linha tênue entre práticas legais e ilegais. Por outro, uma democratização do acesso a eletrônicos para pessoas de baixa renda. E a gente sabe que tanto uma coisa como outra gera incômodos nas partes mais abastadas da cidade. Mas o estereótipo classista que associa o bairro a atividades ilícitas não é o único fato que tem afastado potenciais consumidores da região. Lojistas dizem que nos últimos anos o público tem diminuído consideravelmente – o que eles atribuem à prática de comprar pela internet e ao aumento da violência no centro de São Paulo, fatores que foram potencializados durante e após a pandemia. Reportagem da Folha de São Paulo de setembro de 2023 não exita em dar uma explicação logo na manchete, sugerindo que o esvaziamento do Santa Ifigênia está diretamente relacionado com a dispersão da cracolândia. 

Mas o que será que uma antropóloga portuguesa, cursando doutorado nos Estados Unidos, encontrou no Santa Ifigênia que contrasta com as visões classistas sobre o bairro? Você já parou para pensar no Santa Ifigênia como um lugar que PRODUZ tecnologia? É sobre isso que a gente conversa em seguida. 

[ separador baixo]  

YAMA: Uma trajetória inesperada, como muitas vezes é o caso com antropólogos. Uma antropóloga portuguesa com origens na periferia industrial do sul de Lisboa, vai à universidade e acaba pesquisando ciência e arte, tema que a leva aos Estados Unidos. Já durante seu doutorado, uma escola de verão na Unicamp a impacta profundamente. Não apenas ela muda seu tema para priorizar a produção tecnológica, como passa a pensar no Brasil como um lugar ideal para fazer seu trabalho de campo. Visita a zona franca de Manaus, o complexo do Alemão no Rio de Janeiro e também uma série de espaços de ativismo hacker e de produção tecnológica em São Paulo. Entre indas e vindas ao Brasil, termina fazendo parte de seu campo etnográfico no famoso bairro paulistano de Santa Ifigênia. Mais especificamente, numa escola de reparo de celulares. 

Na primeira parte de duas dessa entrevista com a professora Liliana Gil, da universidade Ohio State, nos Estados Unidos, conversamos sobre sua trajetória acadêmica até chegar a São Paulo e conhecemos um pouco melhor essa face menos conhecida do Santa Ifigênia, onde as atividades de reparo ganham centralidade. Na segunda parte, conheceremos uma escola de reparo de celulares que fica no bairro e que foi pesquisada de perto pela professora – como antropóloga e como aluna. 

Entre boxes infinitesimais e galerias labirínticas, ela encontrou o que chama de ecologia do reparo. Esse termo que dá nome a esse episódio a gente descobre o que é, já já.  (pausa) O que você escuta agora são trechos das nossas conversas. 

[ separador baixo]

YAMA: Boa tarde Liliana, obrigado por conversar com a gente hoje. 

LILIANA: Sim, muito obrigada Yama pela oportunidade.

YAMA: Imagina, nós é que agradecemos pela sua disponibilidade. Antes de a gente falar sobre o Santa Ifigênia em si, eu queria que você contasse pra gente um pouco da sua trajetória como pesquisadora. Primeiramente, porque você escolheu a antropologia?

LILIANA: Eu comecei a fazer antropologia na Universidade Nova de Lisboa, onde, na verdade, eu venho, meu treino no ensino médio, acho que fala médio, foi em ciências, matemática, biologia, química. Então quando fui para antropologia, primeiro foi um ato de rebeldia, de querer me afastar um pouco das áreas mais óbvias que seria a engenharia e medicina. E eu estava muito intrigada. A antropologia oferecia cursos sobre, não é?, sobre simbologia, sobre política, sobre economia, eu estava fascinada por essas outras áreas. Culturas do mundo… eu nunca tinha viajado nessa época, então para mim era uma forma de viajar pelos livros. 

YAMA: Você manteve sua formação toda na antropologia, né? Mas considerando que seu mestrado em Portugal foi na antropologia médica e que você pesquisava arte e ciência, como foi a mudança que te fez acabar pesquisando produção tecnológica  no campo de estudos sociais da ciência e tecnologia?

LILIANA: Eu quando comecei o doutorado, achei que ia fazer uma tese sobre arte e ciência. E achei que ia regressar a Portugal e à Europa e fazer pesquisa em laboratórios de sci-art e espaços comunitários de ciência. Citizen-science, eram tópicos que me interessavam muito. Entretanto, teve uma summer school na unicamp precisamente, a 2014, acho eu, que foi organizada pelo Dr. Marko Monteiro, entre outros professores. E foi minha 1a visita ao Brasil e foi nesse contexto que conheci um pessoal tão bom, mas tão bom, tão maravilhoso, que fazia coisas tão interessantes com citizen science, com ciência voltada para a comunidade. Conheci nessa viagem o pessoal envolvido no garoa hacker space em São Paulo, que nessa época fazia coisas incríveis. Isso meio que deu uma volta nos meus projetos e na minha cabeça e voltei assim com uma série de interesses novos e numa discussão com meu orientador, conversando sobre isso, ele meio que me desafiou “então, mas que tal um projeto diferente do que você fez no mestrado? Explorar um outro tópico?”. E foi assim que o projeto se direcionou para questões de produção de tecnologia. 

[tom] 

YAMA (em off): Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia é um campo interdisciplinar do conhecimento, que se esforça em combinar o conhecimento de várias disciplinas para avaliar, em conjunto, como sociedade e ciência ou como a política e o conhecimento científico estão entrelaçados.

[tom] 

YAMA: Dentre muitas possibilidades para pesquisar a produção de tecnologia no Brasil você acabou escolhendo São Paulo. 

LILIANA: Devo também dizer que fiz alguma pesquisa em Manaus, na zona franca de Manaus, fiz pesquisa no Rio de Janeiro. Até teve um momento que, devo confessar, que achei que ia fazer mais trabalho no Complexo do Alemão, onde passei um mês numa colaboração com uma organização que era o Barraco 55. E foi muito duro. E depois dessa experiência eu entendi que não ia conseguir fazer essa pesquisa dessa forma, por uma série de motivos. E São Paulo acolheu-me… enfim, nós sabemos porque não é? Foi mais fácil viver em São Paulo e circular em São Paulo. 

YAMA: Além dessas questões práticas, o que havia na cidade de São Paulo que te fez achar ser mais interessante para sua pesquisa?

LILIANA: Tem muita tecnologia, não é? E tem esse imaginário pós-industrial que pra mim é muito familiar, tem a ver com o contexto que eu cresci em Portugal, que é na periferia de Lisboa, periferia sul de Lisboa, que era a zona mais industrializada do país (deixou de ser). E um pouco, a razão pela qual meus avós se mudaram para lá nos anos 50 e 60. Então tinha essa coisa meio familiar e eu tenho um carinho muito especial por cidades que tiveram trajetória e tem esse tipo de cultura. 

YAMA: Mas a cidade de São Paulo é gigante e tem muitas possibilidades pra se pesquisar a produção de tecnologia. Como você acabou fazendo campo no Santa Ifigênia?

LILIANA: Eu conheci através do pessoal que trabalhava no FabLab Livre, que ia a Santa Ifigênia comprar componentes e materiais. Então o Santa Ifigênia surgiu aí, uma primeira vez. Depois, mais tarde, numa conversa com o colega Dr. Carlos Freire, que agora dá aulas, acho que em Belém. Ele é que mencionou a Prime. Nessa época eu comentei com ele “ah eu gostaria de fazer mais trabalho sobre o bairro, acho esse bairro superinteressante, sei que tem toda uma história de eletrônicos, tem todas essas camadas”. E ele é que me falou da escola de reparos que acabei estudando. 

YAMA (off, explicativo): Uma pequena explicação. A prime que a professora acabou de citar, é o nome fictício que ela deu para a escola de reparos que fica em Santa Ifigênia e que ela pesquisou de perto. A gente conversa especificamente sobre a escola no segundo episódio. Dar nomes fictícios a pessoas e lugares pesquisados por etnografia é uma prática comum entre antropólogos e antropólogas para minimizar os potenciais impactos da pesquisa na vida cotidiana dos colaboradores. Mas agora, voltando à conversa. 

YAMA: Como foi para uma estrangeira ir ao bairro pela primeira vez? 

LILIANA: É um caos, não é? Carros, vendedores de bolo, facas, lojas de eletrônicos, muitos CCTV, sistemas de segurança, vários moços meio que te chamando pra comprar isto e ver aquilo, cê tá interessado nisto? Toda uma ecologia urbana (risos) intensa, não é?

YAMA: Percebiam de cara que era Portuguesa?

LILIANA: Sou portuguesa mas enquanto estou calada ninguém sabe, então não chamo muita atenção. Aliás, tenho histórias sobre o sotaque também muito engraçadas, de as pessoas não saberem identificar. Ah, seu portugues é tão bom, você vem da Colômbia? Do Uruguai? Então não é facilmente identificável. (…)

Mas com o Santa Ifigênia era pra mim esse espaço de muito ebulição, claramente muita coisa acontecendo, é difícil ler… porque ao mesmo tempo os prédios são um pouco degradados, não é fácil entender o que está dentro desses edifícios. As galerias, pois tem uma lojinha, e eu escrevi sobre isso na tese de doutorado, tem uma lojinha que ta lá uma senhora vendendo componentes eletrônicos desde 1965, sei lá. E tem muita coisa acontecendo que se você não passar um tempo no bairro e conhecer o bairro, não sabe que está lá. E eu acho que fiquei muito encantada com, por um lado, essa superfície de caos e muita coisa acontecendo e depois conhecendo essas camadas, abrindo e estudando sobre o bairro e percebendo que há dezenas, há muito tempo e muitas camadas de diferentes negócios, e o fato de que ficou focado em eletrônicos muito interessante. (…) E também um espaço democrático, é um espaço onde muita gente que não consegue um celular vai lá e consegue, um tablet. Tem esse lado democratizante. 

YAMA: Santa Ifigênia já teve um enfoque maior na produção, mas hoje, pelo menos na superfície, o que se vê mais é a venda. O que ficou de produção de tecnologia por ali?

LILIANA: (…) Eu acho que o mais próximo que tem de produção é reparo e nós podemos considerar o reparo como uma forma de produção de tecnologia, mas é, neste momento, um bairro com venda de eletrônicos de muitos tipos, seja celulares, seja tablets, seja sistemas de vigilância tipo CCTV. Tem também muitas componentes, então pequenas partes que você pode comprar para reparar ou para montar os seus eletrônicos. Tudo isto novo e usado. Então tem, sim, partes importadas, sejam da China, depois tem toda uma discussão sobre o que vem através do Paraguai, que provavelmente são cópias. Também tem material importado de formas mais ortodoxas e depois tem material usado, também adquirido de várias formas. Inclusive, lembro-me que uma das formas de aquisição de componentes era através de… Era umas famílias que compravam bens, não sei se era a polícia federal, mas basicamente bens confiscados que são comprados em monte e depois desmontados e revendidos. Então tem de tudo. Tem vendedores de rua, camelôs, mas tem muita lojinha também mais formal, outro tipo de negócio. E, sobretudo, dentro desses prédios, desses edifícios mais antigos, que por fora parece que não têm nada, você entra e são galerias imensas de pessoal vendendo coisas, fazendo reparos, etc. Então é um misto. Há o bairro visto a partir da rua e há o bairro visto por dentro desses edifícios, que às vezes são difíceis até de circular lá dentro. Então uma das estratégias que eu tinha durante a pesquisa, eu às vezes contactava pessoas para irem comigo, tipo usuários que conheciam bem Santa Ifigênia e nós íamos passear juntos pelo bairro e pelas lojinhas. 

YAMA: Você falou algo interessante que a diferença do bairro visto de fora de dentro dos edifícios. Dentro dos edifícios seriam os labirintos de boxes que você cita no artigo?

LILIANA: Sim, é sobretudo boxes dentro das galerias. Sim, sobretudo boxes. Sim, são espaços que são divididos e subdivididos e sub-sub-sub-subdivididos e subalugados.

[tom] 

YAMA (em off): Foi nessa parte da conversa que eu perguntei pra Liliana sobre algo que é central no artigo dela… um termo que me chamou atenção desde início e que ela usa pra descrever o que ela viu em campo… ecologia do reparo. 

 [tom]

YAMA: O que é que você está chamando de ecologia do reparo? Se isso é um termo que surgiu com sua pesquisa ou se é um termo corrente na literatura, você pode falar um pouco sobre isso?

LILIANA: Sim, eu acho que não é um tema corrente da literatura. A razão pela qual eu puxei esse termo de ecologia é porque de fato o reparo para acontecer depende de todo um ecossistema. Não existe reparo ou é difícil ter reparo sem haver uma ecologia e um ecossistema que sustente esse reparo, seja através de materiais, seja através de equipamentos, seja através de contactos, seja através de conhecimento. E o conhecimento às vezes até é parte mais difícil de conseguir adquirir e obter porque vivemos numa sociedade em que os rapazes são ensinados desde pequeninos a gostar de eletrônicos e de fazer reparos e a pensar sobre eles próprios como seres técnicos e as meninas não. Eu acho que isso cria uma série de obstáculos.

YAMA: Aham

(pausa) 

LILIANA: Mas a ecologia do reparo tem que ver mesmo com esta ideia de que o reparo depende de um ecossistema, depende de uma série de outras coisas acontecendo à sua volta para permitir que o reparo aconteça. E eu acho que Santa Ifigênia é de facto uma ecologia do reparo comparada ao lugar, sei lá, como Silicon Valley, enfim, também terá o seu reparo, mas se viveres num ecossistema que policia muito o reparo e não providencia os equipamentos, o conhecimento para renovar eletrônicos, o reparo não vai acontecer. Uma das coisas que eu falo muito no artigo é a importância das networks. Um dos motivos pelos quais as pessoas procuravam a escola que eu estudei é porque entravam na network de fornecedores, de equipamento e isso são redes muito difíceis de entrares, nas quais entrares. Então era nesse sentido, a ecologia do reparo. E claro, justamente, é o lado da ecologia, quanto mais repararmos, não é? Há um lado benéfico, mas sim, achei que era apropriado a noção da ecologia. 

[tom] 

YAMA (em off): Numa cultura econômica pautada pela obsolescência programada, as práticas de reparo se tornam práticas de resistência. Tornam o acesso à tecnologia possível para as pessoas de menor poder aquisitivo e, em sua devida proporção, reage aos planos das grandes empresas de tecnologia ao prolongar o tempo de vida dos eletrônicos, o que, por si só, dá uma dimensão ambiental para o termo ecologia. Reconhecer o Santa Ifigênia como o local de uma ecologia do reparo é resgatar uma dimensão invisibilizada do bairro e que reconhece sua importância social, cultural e econômica. E, porque não?, até mesmo ambiental. 

[tom]

LILIANA: Santa Efigênia é quase… Estou a pensar agora num buraco negro com metáfora, mas talvez não seja a melhor. Mas é muito condensada, não é? É a sensação que você está num espaço que condensa todos esses elementos do ecossistema de uma forma que talvez não encontre noutros lugares com facilidade. (…) Acho que ninguém olha para Santa Ifigênia com esse carinho. Ninguém olha para Santa Ifigênia como… ou pouca gente reconhece aquele espaço como um espaço de produção de tecnologia. E acho que é parte do meu trabalho tentar puxar contra isso e tentar mostrar. Não, puxa, tipo… Sim, talvez não seja shiny, já não é aquela coisa que foi há anos atrás, mas continua produzindo tecnologia e tem essa genealogia. E é importante que a gente valide e reconheça o trabalho destas pessoas como produtores de tecnologia também 

YAMA: Mudando um pouco de assunto agora… como todo espaço nos centros urbanos, Santa Ifigênia guarda contradições, diversidade e diferenças. Vou começar te perguntando sobre questões raciais. Você me disse que mais cedo que há uma história da presença negra do local que é um pouco esquecida, apagada.

LILIANA: Há toda uma série de trabalhos que está sendo feito agora sobre territórios negros em São Paulo. O Instituto Bixiga está fazendo alguma pesquisa sobre o passado negro de Santa Ifigênia, que é algo que eu não conheço, porque é muito ligado à igreja. E então essas camadas é um bairro de eletrônicos com muita história, mas essa história vai assim ainda mais profundamente no tempo e tem todas essas dimensões que o centro de uma cidade como São Paulo tem.

YAMA: Você percebeu esse componente racial do Santa Ifigênia de hoje?

Eu não… sim, não. Eu vi muitos imigrantes e percebo essa componente racial. Há claramente uma divisão de trabalho, não é? Aqueles que trabalham na rua, aqueles que trabalham em lojas, os donos de lojas, que normalmente são brancos ou que serão, enfim, de origem imigrante, mas…Então, sim, eu acho que é também um microcosmos daquilo que é São Paulo, não é? Está lá.

YAMA: Na sua pesquisa você comenta em vários momentos como importavam as diferenças de gênero no bairro. Isso tanto no fato de você como antropóloga pesquisando num lugar predominantemente masculino, como nas próprias organizações locais.  O que você pode nos dizer sobre as diferenças de gênero no Santa Ifigênia?

LILIANA: É assim, em geral estes espaços são muito masculinos e sobretudo na sua primeira aparência, não é? Na rua, são espaços muito masculinos os lojistas, as pessoas que estão na rua chamando clientes, há todo um… é um espaço que parece muito masculino. O que eu acho… o que eu aprendi com o tempo é que existem mulheres, mas elas talvez não estejam nos lugares mais óbvios ou não seja tão fácil de encontrar. Eu tive um momento em que eu precisei de soldar um fone que estava estragado e pensei, bem, vou a Santa Ifigênia resolver este problema, vai servir de pesquisa de campo e de coisa útil para fazer. Falei com um amigo interlocutor que conhecia bem Santa Ifigênia, fomos juntos, e ninguém queria soldar o meu fone porque era um trabalho muito minucioso e difícil. Falavam de uma tal de Priscila, tem que ir à Priscila, tem que ir à Priscila, falem com a Priscila que ela resolve. Bem, a Priscila foi dificílima de encontrar, mas a Priscila é uma mulher que faz reparo em Santa Efigênia. Estava numa box, numa galeria, parecia um labirinto, mas ela está lá e está a trabalhar, inclusive tinha mais mulher na equipa dela, na box dela. Então, as mulheres estão presentes, mas talvez não sejam nos lugares mais óbvios, talvez não sejam da forma mais pública, e o espaço enquanto mulher a fazer pesquisa às vezes se intimidava, não é? 

YAMA: Você se sentia intimidada enquanto pesquisadora fazendo campo por lá?

LILIANA: Eu parto sempre, eu nunca penso muito nessas questões até me sentir intimidada. Não parto do princípio que vai ser difícil por ser mulher, nem… aliás, a minha pesquisa é sobre tecnologia e estou perfeitamente habituada em estar em espaços muito masculinos, infelizmente é assim que acontece, mas às vezes era, sim, era duro e, sobretudo, fazer entrevistas com pessoas. Eu sentia que às vezes, sabes, mulher, portuguesa, era um bocadinho difícil, era difícil estabelecer contacto, era difícil manter a conversa, sentia muitas vezes que me sentia um bocadinho minorizada, não é? E embora eu às vezes utilize essa estratégia, porque acho que para falar de tecnologia muitas vezes até dá jeito fazermos um pouco de burros para conseguir ter as conversas, nesse contexto de Santa Ifigênia às vezes foi muito difícil.

YAMA: E na escola de reparo que você pesquisou mais de perto, era a mesma situação?

LILIANA: O que eu encontrei nessa escola de reparo foi um espaço muito mais amigável para mulheres, não é? Muito mais acolhedor para pessoas que não são as pessoas típicas que frequentam o bairro.

[tom]

YAMA: Vou interromper a nossa conversa um pouquinho agora. Agora que já temos alguma dimensão do que seja o Santa Ifigênia e que sabemos que há uma ecologia do reparo no local, seguimos para a segunda parte desta entrevista, onde olhamos em detalhe para a Prime, a escola de reparos de celulares onde a Liliana pesquisou, mas também frequentou como aluna. 

[baixo]

[começa Documentary]

Este episódio foi roteirizado e produzido por mim, Yama Chiodi. A revisão foi da coordenadora do Oxigênio, Simone Pallone. Se você quiser ler o artigo completo escrito pela Dra. Liliana Gil, em inglês, deixo um link para o pdf na descrição. 

A edição do áudio foi feita por *****. . O Oxigênio é um podcast produzido pelos alunos do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp e colaboradores externos. Tem parceria com a Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e apoio do Serviço de Auxílio ao Estudante, da Unicamp. Além disso, contamos com o apoio da FAPESP, que financia bolsas como a que me apoia neste projeto de divulgação do  Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT. 

A lista completa de créditos para os sons e músicas utilizados você encontra na descrição do episódio.

Você encontra todos os episódios no site oxigenio.comciencia.br e na sua plataforma preferida. No Instagram e no Facebook você nos encontra como Oxigênio Podcast. Segue lá pra não perder nenhum episódio! Aproveite para deixar um comentário.

[Termina Documentary]

Aerial foi composta por Bio Unit; Documentary por Coma-Media. Ambas sob licença Creative Commons. 

Os sons de rolha e os loops de baixo são da biblioteca de loops do Garage Band.

A reportagem de Celso Russomanno citada está disponível na íntegra no canal dele no Youtube, no link: https://www.youtube.com/watch?v=AOGyS7VRGI4

Para ler o artigo da professora entrevistada na íntegra, basta acessar o link: https://drive.google.com/file/d/100tviO-2c1z7mhzMLYX8ghXrxs2jNXYJ/view?usp=sharing

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