Série Termos Ambíguos – # 1 – Ideologia de Gênero
mar 4, 2024

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Você sabe o que significa o termo Ideologia de Gênero? E Cristofobia, você sabe o que é? E de onde surgiu a ideia de Racismo Reverso? Pensando em esclarecer a origem e os usos de termos ambíguos como esses que criamos o podcast Termos Ambíguos, uma parceria do podcast Oxigênio e do Observatório de Sexualidade e Política (SPW na sigla em inglês). Os episódios foram criados a partir da publicação Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia, uma realização: Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ, coordenado pela pesquisadora Sonia Corrêa, ilustrado por Carol Ito e que contou com a participação de uma grande equipe de pesquisadores na elaboração dos verbetes.

Este primeiro episódio trata do termo Ideologia de Gênero, mostrando o contexto de criação ou apropriação do termo pela extrema direita em discursos que vão na contramão de políticas e leis que visem promover direitos de gênero e étnico-raciais. O episódio conta com entrevistas de Rodrigo Borba, do professor de ensino médio Marcos Ferreira e de Sonia Corrêa. O roteiro foi produzido por Irene do Planalto Chemin, Clarissa Reche, Simone Pallone e revisado por Clarissa Reche, Tatiane Amaral e Nana Soares. O tiktok do projeto foi produzido por Maiya Yantunde Cruz. A capa foi produzida por Marcelle Matias.   

Os trabalhos técnicos foram feitos por Daniel Faria, que também apresenta o podcast junto com Yvana Leitão. A concepção do podcast é de Daniel Faria, Sonia Corrêa e Simone Pallone e conta com o apoio do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp e foi viabilizado pelo convênio entre o Labjor e a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids.

Acompanhe mais essa série associada ao podcast Oxigênio!

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Roteiro

Daniel: Nas eleições para presidente em 2018, um evento que pautou parte das campanhas foi a história do chamado Kit Gay. Você se lembra disso? O termo foi usado para desqualificar um material didático que integrava o programa Escola Sem Homofobia, do MEC, e cuja origem datava de 2010. // Foi impressionante como setores fundamentalistas religiosos e de extrema direita conseguiram financiar a produção e circulação de várias fake news para promover a ideia de que o programa Escola Sem Homofobia era / na verdade / parte de uma conspiração cujo objetivo era fazer com que crianças virassem homossexuais. 

Yvana: É importante frisar que o fenômeno não atinge apenas o ambiente escolar. Está inserido em debates como o de banheiros unissex em locais públicos,/ cotas para pessoas LGBT,/ sem contar nos inúmeros casos de ofensas a pessoas não heterossexuais. São ataques físicos e até assassinatos.
É nesse caldo que o termo “Ideologia de Gênero” foi ganhando destaque, criando um pânico moral que se instaurou em uma parcela substancial da sociedade brasileira. O que aconteceu com o “kit gay” é um bom exemplo sobre como o termo IDEOLOGIA DE GÊNERO foi instrumentalizado pela extrema direita no país, / ou estimulado por ela / e do quanto essas distorções podem ser nefastas para as pessoas. // Mas do que se trata exatamente esse termo? // Por que ele pode ser tratado como um termo ambíguo?

Daniel: Bem-vindes ao primeiro episódio de “TERMOS AMBÍGUOS”, o podcast que mergulha nas origens das expressões e conceitos que moldam nosso mundo. Eu sou o Daniel Faria, e esse podcast é uma parceria entre o Oxigênio e o Observatório de Sexualidade e Política, o SPW na sigla em inglês. Aqui vamos explorar alguns termos ambíguos que estão muito presentes no nosso dia a dia, mas principalmente no debate político atual. E por que são ambíguos? Bem, esses termos são compostos por palavras simples e conhecidas, mas na forma que eles têm sido usados, carregam sentidos que não os representam como estão nos dicionários.

Yvana: Olá! Eu sou a Yvana Leitão, e vou apresentar este episódio com o Daniel. / Vamos contar pra você a fascinante história por trás da expressão “IDEOLOGIA DE GÊNERO.” Vamos traçar as raízes desse termo e sua ascensão ao protagonismo político no Brasil e no mundo, e as diversas forças que propagaram esse conceito. E eu vou começar contando um caso que ocorreu com o Marcos Ferreira, que é professor de Sociologia em uma escola estadual de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. / Na verdade, quem vai contar é ele. 

Marcos Ferreira: eu sou professor há mais ou menos 11 anos, né? E em sala de aula, eu observei que os meus alunos, eles têm uma certa dificuldade em entender essa coisa da relação de gênero, né da questão de gênero e sexualidade de acordo com conteúdos básico comum, né? De acordo com as normas e as regras de educação aqui em Minas Gerais a gente tem que trazer esse tema pra sala de aula, né, eu abordo ele eh um bimestre todo, ou seja, uma média de mais ou menos dois meses.

Daniel: Aprender sobre gênero e sexualidade é direito dos estudantes, deve integrar a formação pessoal e social da escola. Esses conteúdos fazem parte da Base Nacional Comum Curricular a nível nacional, mas ainda são muito mal vistos pelas camadas mais conservadoras da escola e da sociedade. Isso porque, de acordo com a religião e os valores dessas pessoas, a equidade entre homens e mulheres, a existência de gays, lésbicas, trans ou o casamento entre homossexuais, poderiam levar ao fim dos valores da sociedade e da família. Promover o debate sobre essas questões em sala de aula, leva os alunos a refletirem que existem outras formações de família, que as sociedades mudam, que os valores mudam e que é preciso respeitar. 

Daniel: Retomando a experiência do Marcos, ele contou que nas aulas iniciais sobre gênero e sexualidade, trabalha conceitos sobre o que é “ser homem” e o que é “ser mulher”, e também sobre identificação heteronormativa, diversidade de gênero, classificação sexual como Hetero, Bi, Lésbica, Gay, Trans, Assexualidade e outros. E em 2018, diferentemente de anos anteriores, ele propôs que os alunos fizessem um trabalho de criar “imagens” sobre a temática das aulas, até para evitar muitos embates em sala, o que gerava grande desgaste. Muitas vezes por questões religiosas e morais por parte dos alunos. E qual foi o resultado? O próprio Marcos vai te contar.

Marcos Ferreira: Os alunos fizeram trabalhos maravilhosos. Usei todos os meus alunos, dez ou onze turmas, cada turma com uma média de trinta alunos em sala de aula e aí movimentei esse povo todo só com imagem. Essas imagens foram espalhadas para a escola inteira, né? Chamou atenção de todo o corpo docente, da direção, da vice-direção e o povo gostando.

Yvana: O professor ficou bem satisfeito com o sucesso da sua proposta. Ele disse que identificou nos trabalhos dos alunos e das alunas formas de sofrimentos, de violência física, preconceitos, discriminação, estigma e intolerância às mulheres e à população não hetero. Percebeu um engajamento político em alguns trabalhos com falas gravadas.

Daniel: Apesar do sucesso do projeto, uma colega da escola de Marcos, professora de linguagens ficou, como ele disse, inquieta com as imagens espalhadas pela escola, especialmente com dois dos cartazes que, segundo ela, eram imagens pesadas para um espaço onde tinha crianças, e que iam contra sua crença religiosa. Uma era a imagem de uma pessoa com várias formas: homem, gay, trans e outras. A segunda era a representação de um estupro, com uma mulher derramando sangue do órgão sexual e uma pessoa com a Bíblia direcionada para a vitima. 

Yvana: Sem o apoio da direção para tirar os cartazes, a professora convocou o colegiado, do qual fazem parte membros da comunidade onde a escola tá inserida. A movimentação da comunidade escolar acabou atraindo um político da região, que reuniu uma comitiva de assessores e foi pra escola, filmou os desenhos dos estudantes e postou nas redes sociais, em tom de repúdio àquele trabalho pedagógico. E assim, a coisa foi crescendo. Esse político era o deputado federal Lincoln Portela, do PL de Minas.

Marcos Ferreira: Nossa, parte pior veio depois dessas filmagens. Foram mais de 60 mil visualizações, mais de 30 mil comentários, né? “Estão doutrinando meus filhos”! etc e tal. A direção da escola, aí entrou a secretaria de educação, na situação eu não dormi a noite, né? Porque eu precisava ver todos os comentários, porque a minha vida tava em risco naquele momento, entendeu? Eu entrei em contato com a Secretaria de Educação [que disse], você não vai fazer nada, nós vamos tomar conta da situação e o senhor não vai se envolver em nada. A minha sorte foi que eu estava 100% dentro das normas da Secretaria de Estado de Educação que tem como base, né, a BNCC a nível nacional e aí foi o argumento utilizado a todo tempo para o colegiado.

Daniel: Histórias como a que o Marcos contou foram pipocando em vários lugares: Patos de Minas, Rio de Janeiro, São Paulo… Vários deputados estaduais e federais e também vereadores ligados a partidos conservadores, passaram a contestar o ensino de conteúdos pedagógicos que abordavam a diversidade de gênero e sexualidade. Houve também um forte apelo moral por parte dos fundamentalistas religiosos, evangélicos e católicos, alegando que trabalhar gênero e sexualidade na escola se tratava de reproduzir uma “ideologia de gênero” que destrói a família e produz desordem social. Diante desse cenário de tensão dentro e fora da escola, o professor Marcos optou por um novo caminho didático:

Marcos: 2019, novamente chegou a época de eu trazer a temática pra sala de aula e agora, né? Como fazer sem o enfrentamento, né? Eh mudar novamente a estratégia, né? aí a minha estratégia no ano seguinte foi trazer a religião pra sala de aula. Deu certo. eu fiz um estudo, né? Como é que que aquilo está posto lá, questão de da sexualidade eh na religião. E eu estudei um pouco e aí eu consigo dar um equilíbrio. Mas um equilíbrio obviamente no sentido de mostrar pra eles que não existe somente uma sexualidade, uma classificação sexual, a heterossexual, existe inúmeras, centenas talvez, entendeu? E aí eu trouxe pra sala de aula mais de cem classificações, e eles se identificavam com umas, né? eu eu trago, eu eu uso uma linguagem muito própria dos alunos, né? E e o maior tabu é a questão da religião. Todas as vezes que eu começo abordar esse tema, alunos que eram meus amigos, viram meus inimigos, né? E sempre tem uma porcentagenzinha de alunos. É porque eles não aceitam, né a maioria geralmente são alunos evangélicos, entendeu? Existem alunos que se que ele que ele chega pro professor e diz não é um professor legal gostei muito da sua aula não sabia dessas situações. Tem aluno que se mostra muito curioso: “e existe isso mesmo”? 

Yvana: Alguns alunos, principalmente evangélicos que, segundo Marcos, não recebem bem esse conteúdo, confrontam e questionam em que o professor se baseia pra dizer que existem inúmeras outras classificações sexuais, além da heterossexualidade, e que isso não está na Bíblia. Mas a principal reação ainda é de curiosidade.

Daniel: Depois de ouvir essa experiência do Marcos, a gente vai mostrar como o termo “ideologia de gênero” é um termo usado para deslegitimar o campo de estudos de gênero e políticas destinadas a alcançar a igualdade de gênero. A tal da “ideologia de gênero” serve como estratégia para desqualificar teorias, leis e políticas públicas que contestam desigualdades, exclusões e violências, sejam elas entre mulheres e homens, sejam elas decorrentes das normas impostas pelo que se chama de cis-heterossexualidade. Quem vai falar sobre isso vai ser o Rodrigo Borba, professor de linguística na Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor do verbete Ideologia de Gênero e um dos organizadores do dicionário.

Rodrigo: A minha preocupação especificamente ao escrever o verbete sobre ideologia de gênero tem a ver com o projeto mais amplo, o que nos motivou a produzir esses dicionários, aliás os dois dicionários, né?, o dicionário de termos ambíguos do debate político atual e também a sua versão para um público mais jovem, foi o fato de que, embora haja muitas pesquisas sobre extrema-direita, sobre o campo conservador, sobre o campo super conservadores e seu léxico, suas palavras, as palavras que eles utilizam para mobilizar a população. Ou pelo menos parte da população de forma produzir certos medos contra um grupo que eles acabaram por inventar como inimigos, né? como opositores. Então o objetivo do projeto é justamente transformar esse conhecimento que já está bastante sólido na academia, para um público que, em geral, não tem acesso a esse conhecimento, porque esses textos são publicados em livros, em artigos científicos que não circulam para um grande público.

Yvana: Tá, mas…e como essa noção de gênero foi apropriada pela extrema direita a ponto de ser chamada de “ideologia”, usada para provocar medos e rejeição em torno dessas questões? Nada melhor que o Dicionário de termos ambíguos pra nos ajudar a entender essa jornada. Ao abrirmos a página 33 do Dicionário, a gente volta lá pra 2003, quando, em 14 de julho daquele ano, o termo “ideologia de gênero” surgiu pela primeira vez no Brasil. Em um discurso na Câmara, o deputado federal Elimar Máximo Damasceno, do Partido da Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), um partido inspirado no movimento integralista, expressou suas preocupações. Ouça, na voz de Luiz Henrique Queiroz Leal.

Luiz Henrique Leal – Abre aspas: “A palavra ‘gênero’ sempre foi usada para designar o sexo. (…) Agora, a expressão ‘gênero’ adquiriu outro significado, dentro de uma ‘ideologia de gênero’. Gênero seria o papel desempenhado por um dos sexos, não importando se nasceu homem ou mulher (…) Isso é mais um eufemismo para encobrir desvios no comportamento sexual.” Fecha aspas.

Daniel: No dicionário, o Rodrigo nos mostra que o termo “ideologia de gênero” se originou fora do Brasil bem antes e tem sido usado por forças conservadoras desde os anos 1990 para se opor à igualdade de gênero, aos direitos reprodutivos e sexuais e aos direitos LGBT+, embora o Vaticano já estivesse produzindo textos sobre o tema bem antes, ainda nos anos 1980. A conexão entre “ideologia de gênero”, comunismo, marxismo cultural, globalismo, patriotismo e outros conceitos tem sido uma estratégia compartilhada por neoconservadores religiosos e a nova direita em várias regiões, especialmente na América Latina e Europa. Rodrigo Borba nos fala sobre isso: 

Rodrigo:A fórmula ideologia de gênero, embora nem sempre com essas mesmas palavras, ela é muito antiga. As pesquisas mostram que a Igreja Católica vem há muitas e muitas décadas investindo numa campanha contra mudanças sociais provocadas pelo feminismo. E com isso a igreja vem reformulando seus dogmas de forma que eles pareçam menos excludentes. Então tem gente, por exemplo, que diz que a história dessa noção de ideologia de gênero remonta ao Papa Pio XII. Porém, de forma mais direta, de forma mais intensa, o João Paulo II teve uma atuação bastante importante nessa cruzada vaticana contra o feminismo e contra as mudanças sociais provocadas pelo feminismo. E mais recentemente, claro, o Bento 16, o Ratzinger, que teve um papel crucial nessa história. Então a ideologia de gênero tem uma história muito antiga e pontos de eclosão muito difusos, ou seja, um fenômeno transnacional por excelência, que quando quando ele aparece em contextos nacionais ele tanto repete coisas que já estavam bem estabelecidas no discurso religioso sobre ideologia de gênero, quanto se adapta aos sabores locais. O verbete conta parte dessa história, escolhe pontos nodais dessa história para que faça sentido para o Brasil, né? 

Yvana: Rodrigo relembra o caso do deputado do Prona, mas traz o caso para mais perto dos dias atuais, lembrando que um pouco antes de 2013, veio a história do kit gay e pra ele, o kit gay se acoplou à essa falácia da ideologia de gênero. E aí ele, como autor, tinha um grande desafio de contar essa história toda em apenas 2.000 palavras, que era o tamanho combinado para os verbetes. E tinha que contar como o termo foi adquirindo diversos sentidos e como e como esses sentidos foram se transformando.

Rodrigo: A Sonia Corrêa, por exemplo, diz que a ideologia de gênero é mais ou menos como uma hidra, né? Um monstro de muitas cabeças que se alimenta de muitas fontes diferentes.

Daniel: A Sonia Corrêa ainda não tinha aparecido aqui. Ela é ativista e pesquisadora nos temas de gênero, sexualidade, saúde e direitos humanos. É uma das coordenadoras do Observatório de Sexualidade e Política, que é um programa da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e foi quem, ao lado do Rodrigo, organizou o dicionário, nas suas duas versões. A  Sônia foi “testemunha ocular” da eclosão do problema de gênero do Vaticano em 1995, durante a preparação para a Conferência Mundial das Mulheres que aconteceu naquele ano em Pequim. Segundo  ela, na verdade, o cardeal Ratzinger já tinha preocupações com a teoria feminista da sexualidade pelo menos desde a metade dos anos 1980. 

Yvana: Na verdade, não só ele. Entre a Conferência de População e Desenvolvimento do Cairo em 1994 e a Quarta Conferência Mundial das Mulheres, realizada em Pequim, em 1995, assim que a terminologia de direitos sexuais e orientação foi incorporada ao texto em negociação, a Santa Sé, apoiada por Sudão, Malta e Honduras, solicitou que o termo gênero fosse revisto e exigiu do Secretariado uma definição precisa do seu conteúdo. Em paralelo, gênero era virulentamente atacado nos espaços em que se movimentavam as organizações da sociedade civil envolvidas com o processo que levaria a Pequim. E nos anos 2000, o Vaticano faz uma elaboração teológica sobre o tema. Em 2003 lança um dicionário intitulado O Léxico sobre os Termos Ambíguos acerca da família, em que há um verbete que trata da ameaça de gênero. 

Daniel: Acho que você já percebeu de onde veio a inspiração do nome do dicionário que estamos divulgando neste podcast… 

Sonia: Eu cheguei nas Nações Unidas quando estava em crise a coisa do gênero. Nos processos das Nações Unidas, quando os estados estão negociando você tem um texto e o texto vai sendo lido. Quando há desacordo em relação a um termo, esse termo fica entre colchetes pra indicar que não há consenso. Depois esse termo vai continuar sendo discutido até se chegar a um consenso.
Eu cheguei lá tava todo mundo em pânico porque gênero estava entre colchetes. Pode não haver consenso em relação a gênero, que era um termo que tinha sido adotado na conferência anterior, na academia, né? Já tava super legitimado. O que aconteceu foi que as forças religiosas conservadoras, americanas, as ONGs que estavam presentes ali no entorno do debate elas distribuíram o panfleto que usava um texto de divulgação científica da bióloga feminista Anne Faust o-Sterling que é, uma bióloga embriologista especialista em estudos de intersexualidade né? E era um um texto de divulgação científica de 92 em que a Fausto-Sterling tenta explicar que do ponto de vista da biologia molecular que ela estuda, entre o sexo masculino e sexo feminino há todo um gradiente de posições possíveis não é? Dependendo do dos níveis hormonais, das gônadas, outras características biológicas. 

Yvana: Quer dizer, já no começo dos anos oitenta essas forças conservadoras tavam escavando os textos da produção científica, da produção feminista, da produção do campo progressista pra identificar categorias, definições e argumentos que poderiam ser usados nessa mobilização do chamado “renascimento conservador”. E é incrível como se usa a ciência estrategicamente para criar desinformação, né? Essa rede disseminação de desinformação foi sustentada não somente pelas regras frouxas de distribuição de conteúdo online, mas também foi encarnada no discurso de grandes líderes populares, políticos e religiosos. 

Daniel: Mas aí, seguindo o Dicionário dos termos ambíguos, a gente entende que foi durante os debates sobre o atual Plano Nacional de Educação, que o termo ganhou ainda mais destaque no Brasil. A inclusão da igualdade de gênero e diversidade sexual nas escolas enfrentou ataques incansáveis de um grupo cristão conservador associado ao Movimento Escola sem Partido. Essas ofensivas contra o conceito de gênero tiveram efeitos duradouros. Professoras e professores, especialmente do ensino fundamental e do ensino médio, passaram a ser atacados por acusações de promover ideologia de gênero. Essa foi a população que mais sentiu sua atividade profissional cerceada. Qualquer coisa que fizesse em sala de aula poderia ser interpretada como uma promoção de ideologia de gênero. A deputada estadual de Santa Catarina, ultraconservadora, Ana Caroline Campagnolo, chegou a abrir um canal para receber denúncias de pais e estudantes. Mas não foi só ela, como lembra Rodrigo.

Rodrigo: Um pouco mais tarde, como uma uma pesquisa da SPW mostrou, até mesmo o Disque 100, que é o número que se pode ligar, né, o número do Governo Federal de defesa dos Direitos Humanos quando o ministério dos Direitos Humanos estava sob o comando da Damares Alves, incluiu-se a categoria e ideologia de gênero como uma uma categoria que podia ser denunciada, né? Ou seja, as pessoas poderiam ligar pro Disque 100 e dizer: “olha a minha professora está promovendo ideologia de gênero em sala de aula”. Então, esse foi um dos principais grupos que sofreram acusações de estarem promovendo ideologia de gênero, né?

Daniel: Essa situação fez com que Rodrigo pensasse muito nesse público escolar para escrever sobre o tema.

Trecho de Voz – Jair Bolsonaro (Português): “Kit gay! Kit gay! Kit gay!”

Yvana: Em 2011, Jair Bolsonaro, então deputado, foi o primeiro político a usar o termo “kit gay” para atacar vídeos educacionais produzidos pelo Ministério da Educação (MEC) para distribuição nas escolas. Bolsonaro usou o “kit gay” durante sua campanha presidencial em 2018 para acusar seu oponente Fernando Haddad de promover a “ideologia de gênero.” Uma vez eleito, Bolsonaro declarou que essa “ideologia” seria combatida em seu governo, e desde 2019, essa oposição a questões de gênero tem sido traduzida em sucateamento e abandono de políticas públicas. E aí, vale a pena ouvir um trecho da fala da Erika Hilton, deputada federal pelo estado de São Paulo, no programa Roda Viva, da TV Cultura, em setembro de 2021:

Erika Hilton: Eu acho lamentável que isso tenha partido do Vaticano com o Papa Bento XVI na construção do que seria a ideologia de gênero que foi se desdobrando ao kit gay, a mamadeira de piroca e a todos esses absurdos que nós vimos famílias inteiras acreditando. E é muito triste ver que isso partiu de um espaço religioso, de um espaço de fé. Fundamentalismo que se utiliza da fé das pessoas pra gerar um pânico moral, pra gerar um medo e gerar um caos, né?
Eu acho que ter sido eleita como uma mulher, como a mulher mais bem votada do país, mostrando o que eu tenho namorado, que eu tenho irmãs, que eu tenho mãe, que eu sou filha, que eu sou neta, que eu sou várias coisas, vai desmistificando essa ideia de que LGBTs, de que pessoas trans querem destruir a família, de que pessoas trans querem contaminar as escolas e as pessoas com uma ideia pornográfica, com uma ideia de desvalorização da vida. E nós só conseguiremos construir um diálogo com as pessoas que estão do outro lado, olhando pra pauta de gênero, pra pauta da sexualidade como uma coisa demoníaca, como uma coisa que vai desestruturar a sociedade, como se nós não fizéssemos parte da sociedade quando nós partirmos do campo, da didática, da pedagogia. É uma coisa Paulo Freiriana que precisa estar incorporada no nosso discurso ativista, no nosso discurso militante pra que nós começamos a nos está com as pessoas que a igreja consegue conectar. E a gente precisa encontrar um um uma palavra, encontrar uma didática que nós possamos primeiro mostrar que não há nada de errado com nós que nós não temos a pretensão de acabar com a família. Nós só queremos que a que na família também possa haver democracia. Que a família possa ser representada por várias vertentes de várias formas e que nós também temos família. Que nós também fazemos parte de uma família e que nós não queremos impor nada a ninguém. A nossa intenção não é fazer com que ninguém seja gay, lésbica ou trans muito pelo contrário é pra que as pessoas que é sem unção possam ter a liberdade de existir. 

Yvana: Rodrigo reforça essa questão.  

Rodrigo: Um dos desafios desse verbete é contar essa história que é bastante complexa, né? É  mostrar que a questão do gênero não tem nada a ver com o que se fala sobre ideologia de gênero, é o conceito de gênero, é a ideia de gênero tem como principal objetivo mostrar que a sociedade produz hierarquias, diferenciações entre homens e mulheres e que essas hierarquias e diferenciações não têm nada de natural ou seja, elas são socialmente construídas. Ou seja então, ao se falar de gênero falar de gênero é problematizar como essas hierarquizações, essas diferenças são inventadas, não são inerentes a homens e mulheres não se nasce assim quando se fala em gênero o que se o que se está o que está em jogo na verdade é pensar em possibilidades de construir uma sociedade mais igualitária e não tem nada a ver com doutrinação de criança, com transformar criança em homossexuais, homossexualizar criança, né?

Daniel: Mas o combate contra forças conservadoras é difícil. Em recente artigo na Folha de S. Paulo, a jornalista Dani Avelar diz que há uma ofensiva legislativa contra pessoas trans no Brasil. E, segundo levantamento da Folha, ao menos 69 projetos de lei antitrans foram apresentados nas esferas federal, estadual ou municipal até março de 2023. A maior parte desses projetos são da esfera estadual e o Partido Liberal sai disparado na frente em número de projetos, com 37 propostas. Em segundo lugar, o União Brasil apresentou 8. Vamos deixar o link para a coluna da Dani no site. 

Yvana: E você deve estar se perguntando quais são os temas desses projetos, e são vários: tem projetos nas áreas de linguagem, saúde, esporte, educação… alguns visam a proibição do uso de linguagem neutra em escolas e na administração pública; outros querem impedir o acesso de crianças e adolescentes trans a procedimentos como uso de bloqueadores de puberdade e hormônios; nos esportes querem estabelecer apenas o sexo biológico como critério para determinar gênero em competições; alguns insistem em impedir a implementação do projeto Escola sem Partido, justificando ser ideologia de gênero. Tem uma proposta de prender adultos que apoiem menores de idade na transição de gênero e, claro, um dos projetos que têm provocado grande euforia, e que foi tema bastante falado nas últimas eleições, é a proibição de banheiros unissex em estabelecimentos públicos e privados. São projetos que visam cercear os direitos das pessoas trans.

Daniel: Na nossa imersão, fica evidente que o termo “ideologia de gênero” opera como um espantalho ideológico, reunindo forças distintas em torno de “inimigos comuns”: a diversidade de gênero, feministas e direitos LGBT+. Compreender o contexto histórico desse termo nos permite entender como o conceito de gênero, um conceito elaborado a partir da critica feminista, pôde ser instrumentalizado para fins antidemocráticos. No próprio Dicionário de termos ambíguos, existem outros termos que podem nos ajudar a entender como se constroem e se modificam, historicamente, palavras e seus sentidos. O termo “ideologia”, o termo “cristofobia”, mostram a articulação de narrativas pra gerar discurso de ódio, repúdio, medo e desordem social.

Sonia: ideologia de gênero, patriotismo, cristofobia, né esperando que as pessoas ao lerem né eh o verbete, os verbetes, compartilhem e que isso possa de fato contribuir pra não serem tão facilmente capturadas por esses ciclones discursivos, né? Compreenderem que eles tem uma história, que eles tem um objetivo, saberem argumentar frente a quem traz essas ideias e e faz essas acusações, né? 

Daniel: Hoje pudemos conhecer e repensar o termo “ideologia de gênero”, adentrando juntes nos termos e vocabulários que fazem parte de um repertório de extrema direita e transnacional. As palavras que vamos conhecer nesta série são dispositivos muito importantes, capazes de agregar afetos e produzir sentimentos, temores e medos nas pessoas. Você já tá curiose pra conhecer os próximos termos? Acesse o Dicionário de termos ambíguos no site do podcast Oxigênio e junte-se a nós no próximo episódio de “Termos Ambíguos” enquanto continuamos a desvendar as origens dos termos que moldam nosso mundo. Agradeço por nos ouvir.

Yvana: Este foi o primeiro episódio da série Termos Ambíguos, um podcast realizado em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. É um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.

Daniel: A apresentação do episódio foi feita pela Yvana Leitão e por mim, que também sou o produtor e editor de áudio. O roteiro foi escrito pela Simone Pallone, pesquisadora do Labjor e coordenadora do Oxigênio e pela Irene do Planalto Chemin, estudante de Antropologia e Ciências Sociais e membro do podcast Mundaréu. A revisão do roteiro foi feita pela Clarissa Reche, também do Mundaréu, pela Nana Soares, jornalista da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids e pela Tatiane Amaral, mestranda em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – Rio) e pesquisadora do SPW.

Yvana: Segue a gente pra conhecer os próximos verbetes. E se quiser, mande seus comentários para  observatoriospw@gmail.com.

O Oxigênio é um podcast de jornalismo científico produzido por estudantes e colaboradores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Estamos em todas as plataformas de podcast e nas redes sociais. Basta procurar por Oxigênio Podcast. Se você gostou deste conteúdo, compartilhe com seus amigues. 

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