Série Termos Ambíguos – #2 – Cristofobia
abr 15, 2024

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Neste segundo episódio da série Termos Ambíguos vamos falar sobre a origem e o uso da expressão Cristofobia que, assim como Ideologia de Gênero, faz parte do repertório da extrema direita transnacional e desempenha um papel importante em estratégias políticas. Esses e outros termos que vamos tratar nesta série são poderosos e capazes de evocar emoções e produzir temores e ansiedades infundadas nas pessoas. 

Para tratar do termo Cristofobia, entrevistamos Janaina Tavares, doutoranda no programa interdisciplinar de linguística aplicada na UFRJ e autora do verbete Cristofobia, no Termos Ambíguos do Debate Político Atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia, com Ronaldo de Almeida, professor de antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e com Vladimir de Souza,   pastor da Igreja da Redenção Baixada, do Rio de Janeiro. 

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Henrique Vieira: O Brasil é um país cristofóbico. Essa é uma expressão muito utilizada por setores evangélicos fundamentalistas. Eles acham que o nosso país é cristofóbico porque as mulheres estão lutando pelos seus direitos, porque os LGBTs, gays, bissexuais, travestis, transexuais também se organizam e lutam pelos seus direitos. À medida que essas pautas avançam, eles acham que o Brasil está se tornando um caos”.

Daniel Faria: Essa fala é do pastor Henrique Vieira, que é ator, poeta, professor e deputado federal do Partido Socialismo e Liberdade. Ele foi eleito em 2022, pelo Rio de Janeiro. É com ele que começamos este segundo episódio do Termos Ambíguos, o podcast que mergulha nas origens das expressões e conceitos que moldam nosso mundo. Eu sou o Daniel Faria, e esse podcast é uma parceria entre o podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp, e o Observatório de Sexualidade e Política, o SPW, na sigla em inglês. Aqui vamos explorar termos que estão muito presentes no nosso dia a dia, mas principalmente no debate político atual. O termo que vamos tratar hoje é CRISTOFOBIA. Mas será que isso existe mesmo?

Tatiane Amaral: Eu sou a Tatiane Amaral e vou apresentar esse podcast com o Daniel. Para começar, podemos destrinchar a palavra Cristofobia para saber a sua origem, a partir da descrição que encontramos no dicionário de Termos Ambíguos do Debate Político Atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia, o objeto principal desta série. Segundo o dicionário, “o sufixo ‘fobia’ vem da palavra grega phobos, que significa medo ou aversão extrema a certos objetos, situações, animais ou pessoas. Para a psiquiatria, as fobias estão associadas ao aparecimento súbito de um medo irracional, injustificado e persistente”.

Daniel: Tipo aracnofobia, que é fobia de aranhas ou claustrofobia, que é o pânico de lugares fechados ou com pouca circulação. Mas foi nos anos 1970 que o psicólogo George Weinberg criou o neologismo homofobia, para descrever formas extremas de aversão a pessoas homossexuais. E, nos anos 2000, o termo se desdobrou em lesbofobia e transfobia para descrever a discriminação contra mulheres lésbicas e pessoas trans. Sim, esses termos denotam aversão extrema a pessoas, simplesmente por não se encaixarem em um padrão social heteronormativo.

Tatiane: E vem daí o termo que vamos decifrar neste podcast: Cristofobia, que é usado para denotar supostas manifestações de aversão a Cristo. Esse uso distorce o sentido político do termo fobia, pois não faz sentido usar essa definição para descrever sentimentos em relação a figuras históricas, mitológicas ou religiosas, como é o caso de Jesus Cristo.

Daniel: Porém, isso não se aplica a “cristianofobia” termo usado num documento publicado em 2003, pelo relator especial da ONU para liberdade religiosa. Nesse texto, Cristianofobia indica aversão a pessoas que professam religiões cristãs, fazendo um paralelo correto com as manifestações de islamofobia e semitismo. Mas no Brasil, desde o começo dos anos 2010, o termo usado por vozes evangélicas ultraconservadoras tem sido, de fato, Cristofobia para nomear as supostas aversões, repulsas ou até mesmo perseguições aos cristãos e ao cristianismo.

Tatiane: Os dados apresentados pelo relator especial da ONU naquele ano, assim como estudos e fatos posteriores nos dizem que a Cristianofobia é uma realidade em várias partes do mundo. O caso mais conhecido é da comunidade cristã dos Azidis que foi perseguida quando a milícia jihadista conhecida como Estado Islâmico ocupou territórios no Iraque. Mas há também registro de perseguição aos cristãos na Nigéria, China e até mesmo no Marrocos. Contudo, cabe perguntar se isso se aplica mesmo ao Brasil.

Janaina Tavares: As sutilezas perigosas como você mesma colocou, estão no fato de que existe mesmo cristofobia em diversos países, né? como no Irã, Nigéria, China, Marrocos, entre outros. A lista é bem grande.

Daniel: Esta foi a Janaina Tavares, autora do verbete Cristofobia, que compõe o Dicionário de Termos Ambíguos. Conversamos com ela para saber um pouco mais sobre este termo e seus usos problemáticos no Brasil

Janaina Tavares: Olá, me chamo Janaina Tavares, sou moradora da Baixada Fluminense, evangélica há oito anos, e faço doutorado no programa interdisciplinar de linguística aplicada na UFRJ. Contribuo como orientadora de projetos na iniciativa de Educação antirracista Baixada Lab. Faço parte da igreja cristã Redenção Baixada e pesquiso letramento de sobrevivência de esperança na produção cultural e no chão das igrejas progressistas.

Daniel: A origem do termo Cristofobia remonta ao início do século XXI. Em 2003, nos Estados Unidos, um pastor da Igreja Metropolitana usou o termo “cristofobia” para descrever como as comunidades LGBT+ rejeitavam as igrejas cristãs que repudiavam, radicalmente, as homossexualidades, lesbianidades, transexualidades. E, claro, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Mas muito rapidamente o termo passaria a ser usado por vozes conservadoras, para criticar visões políticas que, segundo elas, negavam o legado do cristianismo.

Tatiane: No Brasil, esse uso negativo do termo proliferou desde o começo dos anos 2010, quando forças religiosas atacaram visões e propostas legislativas favoráveis aos direitos LGBTQIA+. Mas o termo ganhou mais destaque nos últimos anos. 

Janaína Tavares: Ser cristã facilitou na busca pelos caminhos desse termo ambíguo, pois outros contatos com teólogos, sociólogos, cristãos, que me ajudaram com pistas. E o que a gente entende sobre o termo é que a palavra cristofobia ela é usada para descrever o medo ou aversão ao cristianismo. Ela é frequentemente usada por líderes evangélicos conservadores para descrever o que eles acreditam ser uma perseguição ao cristianismo no Brasil. O termo cristofobia se popularizou a partir de 2010, quando o líderes evangélicos como o Silas Malafaia e o Marcos Feliciano começaram a usar nos seus discursos e entrevistas, enfim, e também com jornalista Reinaldo Azevedo escrevendo artigos, alegando que o cristianismo é a religião mais perseguida do mundo. O campo evangélico conservador passa a usar o termo como uma forma de reação de debate sobre o projeto de lei que propunha a criminalização da homofobia. Essa reação foi ainda maior quando também o Supremo Tribunal Federal reconhece a união civil homoafetiva em 2011.

Tatiane: A expressão passou a ser disseminada também por políticos evangélicos, ou seja, que atuam tanto na igreja como nas esferas políticas municipais, estaduais e até mesmo federal. O Marco Feliciano, mencionado pela Janaína é um desses casos. Além de pastor, ele é deputado federal pelo Partido Liberal, o PL, de São Paulo. No plano municipal, identificamos o vereador Carlão, do PL de João Pessoa, que em plenário expressou sua preocupação com o avanço da perseguição a pessoas que professam a fé cristã. Usou como exemplo países como Nigéria e Coreia do Norte, também mencionados pela Janaína, onde, segundo ele, extremistas destroem altares, templos e pessoas são atacadas, mortas ou feridas. Citou também a Nicarágua, que proibiu uma procissão católica, aproveitando para fazer uma associação entre o ditador nicaraguense Daniel Ortega e o presidente Lula. Segundo Carlão, essa perseguição pouco a pouco estaria adentrando o nosso país.

Daniel: Mas podemos dizer que o ápice desse uso distorcido do termo Cristofobia foi o discurso do então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, na abertura da Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro de 2020. Nele, Bolsonaro apelou “pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. Essa alusão visava certamente mobilizar seus apoiadores fiéis que, como se sabe, são filiados às igrejas pentecostais e correntes católicas ultra conservadoras.

Ronaldo Almeida: Eu fiz um esforço quando vocês me convidaram. Um esforço de memória, para saber desde quando eu ouço essa palavra. Porque homofobia é clássica, do conhecimento de todos, mesmo não cristãos, né? De que a história do cristianismo passa pela perseguição seu nascimento seu mito de origem desde de Cristo até a chamada Igreja Primitiva.

Tatiane: Esse quem fala é o antropólogo Ronaldo de Almeida, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, que realiza pesquisas sobre religião, em especial sobre os cristãos neopentecostais.

Ronaldo Almeida: Até a oficialização do cristianismo com a igreja do império já no século IV, né? Mas foi um período dos primeiros séculos de perseguição como qualquer religião minoritária, então isso não é uma particularidade também do cristianismo, a perseguição é religiosa, né? Então a perseguição aos cristãos teve na sua história no seu nascimento e deve ter a contemporaneidade. A questão é que precisa se situar, né? Aonde que ocorre essa perseguição. No Brasil, ela é um pouco estranha, para dizer a verdade, dado que a maioria da população é cristã, né? Então que povo perseguido é esse se eles compõem a maioria da população como que ela se dá?

E aí eu comecei a pensar um pouco quando eu começo a ouvir isso, né? E aí fui lembrando no final dos 80 dos anos 80, tiveram dois filmes. Um é a Última Tentação de Cristo e outro Je vous salue Marie, que era do Godard e o outro do Scorsese. Je Vous Salue Marie foi censurado pelo governo Sarney por forte pressão da Igreja Católica os dois movimentos foram muito dos católicos, né contra esses dois filmes e eu não lembro, eu procurei falei a palavra cristofobia não tava posta, ninguém tratou isso necessariamente como a perseguição. E a minha percepção é que o termo é mais recente e ele tem que ser compreendido em relação a outros termos, né? O primeiro é em relação à homofobia, eu acho que antes de mais nada é um termo que vem competir com esse.

Uma coisa que o sociólogo da religião já falecido, professor da USP, Flávio Pierucci falava sobre essa coisa do evangélico se colocar na posição de perseguido, ele falava sobre a Igreja Universal que perseguia as religiões afro, mas se colocava no discurso de perseguido. Ele chama de um efeito de reversão. E a impressão que dá que cristofobia me parece que é um pouco isso, é uma reação, uma captura do termo homofobia para jogar confusão no debate, de extinção e um pouco equilibrar o jogo, então vocês perseguem vocês dizendo que nós perseguimos os homossexuais e vocês perseguem os cristãos e aí, no mínimo empata o jogo.

Tatiane: É interessante situar a análise do Ronaldo no já mencionado contexto político dos anos 2010, quando a pauta ultraconservadora ganhou vigor, o que mais tarde daria combustível ao ciclone político que elegeu Bolsonaro em 2018. Há que dizer que o discurso da Cristofobia não está dissociado das fakes news então propagadas à época. O chamado kit gay, a legalização do aborto e a emancipação feminista criaram pânicos morais e políticos para capturar a imaginação das e dos eleitores, sobretudo com a fantasmagoria da sexualização precoce das crianças. Subjacente a essas supostas ameaças estava latente o espectro da aversão aos cristãos e ao próprio Cristo.

Daniel: Vladimir de Souza, pastor da Igreja da Redenção Baixada, a mesma que Janaina frequenta, também tem elaborações sobre as dinâmicas em que fantasmas de Cristofobia se misturam com a política eleitoral. O que a gente ainda não tinha dito é que na sua igreja, as pessoas LGBTQIA + são acolhidas e são parte ativa da comunidade. O pastor Vladi, que é pedagogo e tem formação batista, aposta na criação de canais de aproximação com evangélicas e evangélicos fora dos períodos eleitorais para tentar promover esse diálogo

Vladimir de Souza: Hoje a igreja mais conservadora não é só conservadora, ela é reacionária. Você ser conservador é primar por valores que para você são inegociáveis, ou, como diria aquele ministro da era Collor: imexíveis. Faz sentido, né? Mas não é sobre isso. Nós estamos vendo, na verdade, um movimento religioso se apropriando de pautas que, para mim, inviabilizam, precarizam ou esvaziam direitos já consolidados pela promulgação da Constituição cidadã de 1988, depois de 21 anos de ditadura militar. Então o que nós temos hoje é um movimento muito diferente. É algo que eu nunca vi, eu tô com 52 anos, me lembro muito bem como foi a primeira eleição, né? Após a ditadura, na reta final nós tivemos o Collor e o Lula, claro que a igreja viveu uma certa tensão.

Que era muito próprio, até porque a imagem do Lula estava associada ao comunismo, aquela história toda, mas não houve uma ruptura como aconteceu em 2018. O tecido religioso evangélico brasileiro, ele não é o mesmo desde 2018. Eu poderia dizer assim, eu gosto de fazer uma linha do tempo, acho que de 2013 para cá que esse processo começou. Acho que por conta das Jornadas de Junho, que colocou muita gente na rua, inclusive os evangélicos, com várias pautas, um tanto quanto confusas e difusas, mas que, de certa forma, também estava gestando essa extrema direita, em especial essa galera aí do MBL, que agora tem até um partido político, né? Então, para mim começa em 2013, depois 2013 foi apenas um abalo sísmico, né? 2016 teve um abalo mais intenso, porque tem a ver com o impeachment da Dilma, e em 2018 na verdade foi um terremoto.

Tatiane: A trajetória descrita pelo pastor Vladi mostra como o uso político da religião, somado ao recurso das fake news produziu um fantasma: o Estado estaria se opondo aos princípios cristãos. Entre outros efeitos, esse fantasma aciona ataques a políticas públicas antidiscriminatórias, inclusive no âmbito do respeito e proteção da liberdade religiosa. Embora mais de 80% da população brasileira seja filiada a religiões cristãs, existem no Brasil muitas religiões. Segundo o Censo de 2010, último dado sobre isso, 0,3%, por exemplo, estão afiliados a religiões de matriz africana e 8% declaram não ter nenhuma religião.

Daniel: E quando falamos em intolerância religiosa, as religiões de matriz africana sofrem verdadeira perseguição no país. A punição para estes atos existem desde 1997, e as penas foram aumentadas pela lei de injúria racial aprovada em 2023, a Lei 14.532. Mesmo assim, são cada vez mais comuns os ataques aos terreiros, localizados principalmente em zonas de milícias no país. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos, em 2022 houveram 1.200 ataques motivados por intolerância religiosa, um aumento de 45% em relação a 2020. Um exemplo desses ataques ocorreu em 2023, no município de Piraquara, no Paraná. A Casa de Terreiro de Umbanda Tia Maria, foi apedrejada logo que se iniciaram as atividades ritualísticas. Nesse cenário e, com toda razão, as pessoas que pertencem a essa tradição espiritual, assim como as que pesquisam e lutam contra o racismo, definem essas práticas discriminatórias e violentas como racismo religioso.

Tatiane: Não podemos nos esquecer que, além dessas outras religiões, há também no Brasil correntes cristãs progressistas, que não aderem aos princípios ortodoxos dessa tradição. Elas apoiam os direitos das mulheres, da comunidade LGBT e das comunidades espirituais afro-brasileiras, que têm sido alvos de discriminação e perseguição. É o caso da Redenção Baixada, como comentam Janaina e Vladi.

Janaina Tavares: O que observamos no país é uma perseguição, entre aspas, interdenominacional, digamos assim nós da Redenção Baixada por exemplo torcemos uma igreja afirmativa e comprometida com os direitos humanos e com combate ao racismo na baixada Fluminense, que fica uma região ultra conservadora a gente já sofreu invasão no encontros online, xingamentos em postagens. Perceba também que não temos uma figura evangélica progressista que tenha tanta repercussão quanto os nomes evangélicos da direita e da extrema direita. Eu mesma, que não sou reconhecida digital e nada dessas coisas, já recebi mensagem de uma evangélica dizendo que eu não conhecia Jesus. Isso porque eu tinha compartilhado algo sobre a teologia Queer.

Daniel: O pastor Vladi também faz questão de deixar claro que sua visão sobre as pessoas queer não tem nenhuma motivação subjetiva:

Vladimir de Souza: Eu sou homem casado dentro de uma configuração tradicional, num casamento de quase 30 anos com a mesma pessoa. Eu tenho dois filhos que também até o momento me parece que são heterossexuais, então eu sou mais um aliado da luta, né? Sou mais alguém que está ali tentando construir um ecossistema possível e necessário para os nossos irmãos LGBTs. A questão é você falar nós vamos acolhê-los, outra coisa é você afirmar dar poder, dividir espaço, que é exatamente o que nós fazemos. Então nós damos um passo que eu acredito que muitos não conseguem fazer por uma série de fatores. Então, eles não só estão entre nós, eles estão em todos os lugares. Mas eles estão entre nós tendo liderança, tendo voz, tendo participação em linhas gerais, cantam, pregam, tocam, estão na escola bíblica dominical.

Daniel: Janaína relata situações nas quais se sentiu discriminada por ser evangélica, sendo que nesse caso a discriminação não vem apenas dos pastores fundamentalistas ou da direita.

Janaina Tavares: Honestamente esse discurso de perseguição das Universidades, da sociedade, contra os cristãos esse discurso cola nos seguidores por vários motivos. Podemos fazer uma reflexão muito breve aqui. Primeiro, parte da esquerda e da universidade e do campo artístico sempre olhou com maus olhos os cristãos com certa razão eu entendo. Mas isso é algo do qual não podemos negar. Eu digo isso porque eu já fui assim com os crentes quando eu não era evangélica. Segundo, para as pessoas elas não atacam com determinados tipos de informações ela só escuta uma versão da história muitas absorvem as fake news, não se importam em realmente entender o outro lado da história e outro tipo de narrativa e, enfim, existe uma acomodação também. Terceiro, tem uma presença forte e constante na vida das pessoas, através das mídias dos jornais das redes sociais os grupos de WhatsApp, as reuniões dominicais. Enfim, eu não saberia responder com precisão mas, fazendo uma avaliação digamos, empírica, acredito então que é um combo é um conjunto de coisas que fazem com que essas pessoas acreditem. Eu digo isso porque eu tenho amigos que seguem uma teologia mais tradicional, que votaram no Jair Bolsonaro, por exemplo, sabem que eu votei no outro candidato e que eu faço parte de uma igreja progressista e a gente consegue dialogar. Até hoje não consegui convencê-los a não votar com projetos fascistas, mas pelo menos a gente consegue abrir um certo diálogo, a gente consegue não se ofender. Enfim, e eu percebo que eles, de fato, nunca ouviram outro tipo de narrativa, então quando eu chego com algo, são olhos arregalados ou, enfim, então, a gente precisa ter uma certa compreensão. Existe canalhice, mas também existe falta de acesso à informação.

Tatiane: Ronaldo avalia que o uso de desinformação nas bolhas de relações acaba ajudando a deturpar uma visão sobre o que é ser cristão.

Ronaldo Almeida: Essa rede de desinformação, ela não é só produzida por cristãos de direita, né? Ela é produzida pela direita, em termos mais amplos. Então você pode ter gente Cristã religiosa, né? Ou, na verdade, a religião vira um ativo político, né? E nesse sentido, nesse nível de desinformação que a gente tá, a religião também entra. Então qualquer atitude, por exemplo de um governo Lula, um governo de esquerda, é tido como cristofobia. Qualquer tipo de regulação, é logo capturado como algo, como uma violência contra a própria religião, contra o próprio Deus, é desse jeito que é manipulado.

Uma coisa que eu venho pensando há muito tempo, o termo Cristão tem mudado de sentido no país, né? E eu sempre cito um exemplo para economizar. Durante a campanha eleitoral, acho que todo mundo deve lembrar desse evento que foi muito midiático. Um sujeito bolsonarista lá em Foz do Iguaçu matou um petista no dia do seu aniversário, né? E aí faz a matéria sobre quem que é esse cara que matou e lá no Facebook, ele se identificava Cristão conservador. E eu fiquei lá procurando para ver se achava algum versículo, alguma referência a Deus, alguma comunidade. No final, não tinha nada. O Cristão na verdade virou uma identidade política, não era uma identidade religiosa. O Cristão dele, não era conjunto de crenças, não era um pertencimento a uma comunidade religiosa, mas era um alinhamento político, né? Eu acho bem interessante a proposta aqui de perseguir o termo cristofobia e mesmo o termo Cristão hoje na atualidade, que eu acho que tá diferente de 10, 15 anos atrás. Eu acho que ele adquiriu um valor político, e divisor da sociedade, que não que não se elabora em termos propriamente religiosos, mas políticos, usando a identidade religiosa.

Daniel: E com essa fala, nosso entrevistado Ronaldo Almeida condensa o que falamos neste episódio, sobre o uso político do termo cristofobia, usando um apelo religioso e distorcendo a realidade sobre quem são os cidadãos perseguidos ou alijados de direitos no país.

Tatiane: Os termos que estamos conhecendo nesta série fazem parte do repertório da extrema direita transnacional e desempenham papeis fundamentais em suas estratégias políticas. Esses termos são poderosos, capazes de evocar emoções e produzir temores e ansiedades infundadas nas pessoas. Justamente por isso, é importante compreendê-los em profundidade para contrapor as agendas e narrativas desses grupos e resistir à realidade que eles buscam construir.

Daniel: Você já tá curiose pra conhecer os próximos termos? Acesse o Dicionário de termos ambíguos no site do podcast Oxigênio e junte-se a nós no próximo episódio de “Termos Ambíguos” enquanto continuamos a desvendar as origens dos termos que moldam nosso mundo. Agradeço por nos ouvir.

Tatiane: Este foi o segundo episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.

Daniel: A apresentação do episódio foi feita pela Tatiane Amaral, doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e por mim, Daniel Faria, estudante do curso de Midialogia, na Unicamp, produtor e editor do áudio deste podcast. Tivemos também a colaboração do Eyder Gomes Lopes, bolsista do Serviço de Apoio ao Estudante, da Unicamp. O roteiro foi escrito pela Simone Pallone, pesquisadora do Labjor e coordenadora do Oxigênio e pelo Valério Freire Paiva, jornalista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e aluno do curso de Especialização em Jornalismo Científico, do Labjor, que fizeram também as entrevistas. A revisão do roteiro foi feita pela Tatiane Amaral, pela Nana Soares, da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.

Tatiane: Você pode nos seguir pra conhecer os próximos verbetes. E se quiser, mande seus comentários para  observatoriospw@gmail.com. O Oxigênio é um podcast de jornalismo científico produzido por estudantes e colaboradores do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp. Estamos em todas as plataformas de podcast e nas redes sociais. Basta procurar por Oxigênio Podcast. Se você gostou deste conteúdo, compartilhe com seus amigues.

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