#166 – Antropoceno: quando a humanidade é assunto da geologia
maio 19, 2023

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Antropoceno é uma palavra que se tornou mais popular nos últimos anos, uma vez que as ações humanas são centrais para determinar as mudanças climáticas observadas nesta era que vivemos, e que por essa razão recebe esta denominação. Para tratar desse tema, e como também o Antropoceno tem sido tratado pelas diversas ciências, em uma colaboração nem sempre muito amigável, o jornalista Yama Chiodi, entrevistou as pesquisadoras Ilana Wainer (USP), Susana Dias (Unicamp), Julia Guivant (UFSC) e o pesquisador Marko Monteiro (Unicamp). Este é o primeiro episódio de uma série que vai tratar de temas e pesquisas do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, sediado no Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp. O episódio contou também com a narração de Luiz Henrique Leal.

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Roteiro 

Yama Chiodi : Este episódio foi feito em parceria com o Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciência e Tecnologia, o GEICT, e com apoio da FAPESP por meio do programa Mídia e Ciência. 

Yama: Mudanças do clima sempre ocorreram, inclusive mudanças extremas. O que há nas mudanças climáticas do nosso tempo que as torna diferente de todas as outras? 

Luiz Henrique Leal: A resposta está na ponta da língua de muitos cientistas: a intensidade e a velocidade dessas mudanças. E tudo parece indicar que toda essa intensidade está relacionada com a presença humana na Terra. 

Yama: Eu sou o Yama Chiodi, jornalista de ciência do GEICT.

Luiz:  Eu sou o Luiz Henrique Leal e hoje falamos de Antropoceno. 

Yama: Você já ouviu falar de antropoceno? O termo tem ganhado popularidade nos últimos anos e parece ser uma oportunidade para discutir como ciência e política se misturam. Uma pesquisa no Google Trends, ferramenta que mostra o fluxo de pesquisa para um assunto ou termo ao longo do tempo, mostra que o termo em inglês teve uma notável crescente a partir de 2010, com seu maior pico em fevereiro de 2020. 

Luiz: As mudanças climáticas e o aumento da temperatura média do planeta são hoje fatos bem demonstrados e as principais causas são quase consensuais na comunidade científica: o aumento acelerado da queima de combustíveis fósseis, do desmatamento, da produção de lixo e do consumo. Não restam dúvidas de que as atividades humanas têm força capaz de impactar o sistema terrestre. Mas as consequências das mudanças na terra não são apenas globais e, ano após ano, observamos consequências locais dessas mudanças. 

Yama: Calor recorde na Europa, frio recorde em São Paulo. Muita chuva, muita seca, muito calor, muito frio, pouca água, muita água, espécies se extinguindo massivamente e tudo só parece piorar. A extensão do impacto das atividades humanas no planeta é tão grandiosa que alguns cientistas das ciências da terra começaram a se perguntar se ele não seria grande o bastante para ser considerado geológico. É daí que surge a ideia de Antropoceno. Antropos, homem em grego, para substituir o Holoceno. Para a humanidade, uma época geológica para chamar de sua. 

Luiz: O conceito de Antropoceno interessa tanto a cientistas naturais como a cientistas sociais. Sua popularidade crescente é sinal de sua capacidade de capturar a atenção de parte da cultura popular e da opinião pública. 

Entre cientistas de todos os campos, contudo, o termo ainda é bastante controverso. 

Mas, você pode estar se perguntando, se não restam dúvidas que as mudanças climáticas são resultado das atividades humanas, por que o termo seria controverso? Essa é uma das perguntas que tentamos responder com a ajuda de especialistas que pesquisam as mudanças climáticas. 

Yama:  Em 2002, o químico neerlandês ganhador do Nobel,  Paul Crutzen, publicou um artigo na reconhecida revista Nature cujo título era “Geologia da humanidade”. Ele não foi o primeiro a usar o termo Antropoceno, mas foi a partir do trabalho dele que o termo se popularizou. Em termos gerais, Crutzen sugeriu que o impacto humano no sistema terrestre foi de tal forma relevante que nos últimos 300 anos houveram mudanças geológicas da ordem de milênios. Estes 300 anos coincidiram mais ou menos com a invenção da máquina a vapor e, portanto, com o início da revolução industrial. Mas foi no momento posterior à segunda guerra mundial que essas mudanças ganharam um contorno dramático. 

Luiz: Esse período, que Crutzen chama de Grande Aceleração, coincide com o nascimento dos chamados baby boomers. Um momento em que o aumento da população mundial, do consumo e da produção de combustíveis fósseis passa a ser acelerado e aumenta de modo descontrolado. Este impacto, ele argumenta, é suficiente para que seja decretado o fim do Holoceno. 

Yama: Pensando somente no impacto humano no sistema terrestre, mudanças climáticas e antropoceno parecem se confundir. Mas o conceito de mudanças climáticas passa longe de ser controverso como o de antropoceno na comunidade científica. Por que isso acontece? Seus maiores entusiastas acreditam que o conceito de antropoceno pode ser uma oportunidade sem precedentes de produzir ciência interdisciplinar.

Luiz: Entre cientistas da natureza, a controvérsia não é se humanos tiveram impacto no planeta, mas se esse impacto é de ordem geológica. Geólogos estão acostumados a lidar com o tempo na escala dos milhões, até bilhões de anos. Mesmo o holoceno contemplaria pelo menos os últimos 11 mil anos. Ainda que seja enorme a destruição de causa humana, será que faz sentido sugerir que os 300 anos propostos por Crutzen cumprem os requisitos materiais para serem uma época geológica?

Yama: Esta não é uma pergunta retórica. Foi exatamente o que eu perguntei para a Ilana Wainer, pesquisadora do Instituto Oceanográfico da USP, que pesquisa mudanças climáticas a partir da Antártida. 

Ilana Wainer: Olha só, eu acho que faz muito sentido. Deixa eu explicar o porquê. Se a gente for 500 mil anos lá na frente e a gente fizer um testemunho marinho ou for olhar um testemunho de gelo, a gente vai perceber que nessa época que a gente tá vivendo agora, o quê, um aumento desses combustíveis fósseis, um aumento da temperatura, aumento de lixo, aumento de plástico. Todas as coisas que estão relacionadas com a atividade humana. Então eu acho que faz muito sentido falar em antropoceno. Tudo que a gente faz, que a gente interferiu com o planeta é absolutamente evidente. Não tem como, se a gente for pensar daqui a 500 mil anos e olhar pra essa época agora, não tem como separar a atividade humana da atividade natural. E o antropoceno é exatamente isso. Olha, a gente tem certeza que é o homem que está causando todas essas transformações. 

Yama: A professora nos disse que o Antropoceno seria esse momento onde atividade humana e natural ficam inseparáveis. E é exatamente isso que sugere Paul Crutzen em outros de seus trabalhos. No título de um de seus artigos ele se pergunta se os humanos se tornaram mais destrutivos que as grandes forças da natureza.

Luiz: O cientista social Marko Monteiro, professor do Instituto de Geociências da Unicamp e especialista nos estudos sociais da ciência e tecnologia, também descreve o conceito de antropoceno em direção parecida, mas salienta seu aspecto controverso.

Marko Monteiro: Você tem uma pequena controvérsia se o Antropoceno existe. Se estamos numa era geológica específica que pode ser chamada de antropoceno. A gente, quando fala Antropoceno em termos mais gerais é pensando, bom, vivemos na era em que o ser humano causa impacto tão brutal que o ser humano tem a capacidade de causar mudanças no sistema terrestre em nível geológico. A discussão mais da cultura pop, do debate público, já podemos falar de uma era própria. Em termos geológicos, como eu falei, você tem que ter uma marcação geológica. Tem que ter uma camada sedimentar que possa ser nomeada. 

Yama: Fato é que, se as atividades humanas são tão centrais para o Antropoceno, é de se esperar que cientistas sociais também se interessem pelo conceito. Mas sua capacidade de gerar a interdisciplinaridade que seus propositores prometem tem sido alvo de controvérsia. O que está em jogo? Um diálogo mais profícuo entre entre ciências naturais e sociais ou apenas um maior número de disciplinas das ciências naturais?

Luiz: Colocando essa questão de lado por ora, é preciso reconhecer que as contribuições das ciências sociais para os estudos das mudanças climáticas antecedem bastante a controvérsia em torno do antropoceno. É o que me disse em entrevista a socióloga argentina Julia Guivant, da Universidade Federal de Santa Catarina, especialista no estudo da interdisciplinaridade na pesquisa ambiental. Apesar destas contribuições já não serem recentes, a interdisciplinaridade se mostra difícil. 

Julia Guivant: É a partir, mais ou menos, dos anos 90 que começou a ser mais intensa, mais significativa, a participação das ciências sociais na pesquisa sobre mudanças climáticas. Quando começaram a estar muito mais evidentes e identificados e reconhecidos pela comunidade acadêmica que as causas das mudanças climáticas não eram exclusivamente físicas, mas eram sobretudo provocadas pela ação humana. Então, as ciências sociais têm um papel central para entender, portanto, como se dá a influência humana na mudança climática. Mas, entretanto, é uma contribuição muito pouco reconhecida desde as ciências da terra, ou das ciências naturais ou das ciências do clima no geral, como se denomina. Elas viveram no controle da pesquisa sobre mudanças climáticas desde que começou e foram se transformando significativamente mas não necessariamente na direção de incorporar elementos das ciências sociais. E não vou dizer que a culpa é exclusivamente dos cientistas das áreas das ciências do clima. Há problemas também de comunicação desde o ponto de vista de cientistas sociais e os cientistas sociais entre si, também tem muita diferença.   

Luiz: Precisamos assumir de partida, portanto, que mesmo com um conceito mais sedimentado como o de mudanças climáticas, a cooperação entre cientistas sociais e naturais pode ser muito difícil. Os cientistas sociais que usam métodos quantitativos são os que encontram mais sucesso na cooperação com cientistas do clima, talvez por compartilhar uma mesma linguagem em torno da estatística e do uso de modelos computacionais.

Julia: Então, há, o que se diria usando uma terminologia de um sociológico o Weber, uma afinidade eletiva entre as ciências do clima que trabalham com modelagem e as ciências sociais mais quantitativas. Aí sim nós vemos que há mais diálogo. 

Yama: Outro problema mencionado pela Julia é a dificuldade de cooperação entre cientistas e os comunicadores da ciência. Muitas vezes ainda reina entre cientistas a chamada teoria do déficit, que, em termos gerais, consiste em assumir que a falta de pontes entre conhecimento científico e público seria a falta de conhecimento do público. Para esse problema, bastaria fazer a informação chegar… mas, infelizmente, não é tão simples assim. A informação correta pode chegar e as pessoas acreditarem nas fake news mesmo assim, alerta a professora Julia. O que mostra a importância das formas de comunicar ciência e como essa é uma parte fundamental da interdisciplinaridade.

Luiz: Parte do problema vem daí. Segundo a professora, há certa resistência de cientistas de todas as áreas em reconhecer a comunicação como especialidade capaz de fazer estas pontes entre pesquisa e público. Em muitos contextos, a mera divulgação da pesquisa pode não criar essas pontes e não ter os efeitos positivos esperados. 

Yama: Problemas antigos da cooperação entre ciências sociais e naturais reemergem com o antropoceno. Ainda assim, cientistas sociais mundialmente conhecidos como Bruno Latour e Anna Tsing defenderam que as possibilidades de cooperação colocadas pelo conceito não se limitam aos modelos computacionais. 

Luiz: Mas, para que haja avanço nesse sentido, vamos precisar entender que nem sempre quando se fala de Antropoceno, diferentes cientistas estão falando da mesma coisa. O nome guarda um princípio comum, mas é alvo de constantes disputas por seu sentido. Especialmente nas ciências sociais. 

Luiz: Quando vamos ao campo das humanidades e das ciências sociais, a controvérsia em torno do conceito é de outra grandeza. Embora o debate sobre qual o tamanho do impacto geológico também tenha importância, há muitas outras questões que levantam outros problemas. Há muitos antropocenos e sua popularidade veio acompanhada de muitas críticas. Para além do impacto geológico, cientistas sociais estão interessados em como o conceito captura o debate e muda as formas como pensamos sobre as mudanças climáticas. Algumas perguntas surgem e movimentam o debate teórico sobre o tema:

Yama: De que humano se está falando? É a espécie homo sapiens? Todos os humanos são igualmente responsáveis pelas mudanças do clima? As responsabilidades também serão divididas por igual? As mudanças climáticas afetam todos da mesma maneira? E se não, será que é outro recorte que seria mais apropriado para esse momento geológico, como o modelo de produção capitalista? Quando começou esse período geológico? Nas civilizações antigas? Nas plantations? No colonialismo? Na revolução industrial? No pós segunda guerra mundial? 

Luiz: Cada resposta para a origem dessa época geológica parece mudar a resposta sobre de qual humano se está falando e essa discussão importa muito para se discutir desigualdade e justiça no contexto de mudanças climáticas. 

Yama: Eu conversei com a Susana Dias sobre as controvérsias em torno do conceito. Ela é bióloga, mas está habituada a trabalhar na difícil interdisciplinaridade das mudanças climáticas. Isso porque é pesquisadora do Labjor, da Unicamp, coordenadora da rede latino-americana de Divulgação Científica e Mudanças Climáticas, é editora da revista ClimaCom – Mudanças Climáticas e também líder do coletivo MULTItão. Ou seja, sua prática profissional é em grande medida voltada para pensar nas mudanças climáticas na interseção de artes, ciência e humanidades, e ela enxerga potências e riscos na noção de antropoceno. 

Susana Dias: Não é um conceito que está estabilizado, e talvez isso seja interessante. Não estar estabilizado. Eu gosto de pensar o antropoceno mais perto da Juliana Fausto, que vai problematizar essa noção de humano. A Juliana Fausto diz que o antropoceno é um regime de governo. Um problema de monocultura civilizacional. E vai localizar num regime de governo destruidor, nefasto, baseado no capitalismo e quem tem gerado, especialmente pra ela interessa muito pensar, essa 6a maior extinção de espécies. Não apenas a questão das mudanças climáticas. E aí no momento que a gente pensa que o antropoceno é um regime de governo, fica mais claro que não se trata de todos os humanos. Acho que o Latour fala de uma maneira bem bacana “nenhuma unidade é possível nessa noção de humano”. Eu penso que essa é a definição que mais me agrada hoje.  Pensar não que o antropoceno é uma era que os humanos são o centro de uma história, que agora os humanos ganharam essa dimensão de força geológica apenas. E é essa a questão, né? De pensar a potência política, ética e estética desse conceito. 

Luiz: Para Susana, é preciso recuperar outras formas de entender o antropoceno, para que a gente não fique somente com aquelas que colocam apenas a humanidade no centro do debate e não problematize que humanidade está em questão.  A questão de voltar o humano para o centro do debate é bastante problemática para as ciências sociais de modo geral, porque a história recente das humanidades foi fortemente impactada pelo combate aos discursos antropocêntricos, especialmente na ciência. Nesse sentido, propor um antropoceno poderia significar um retrocesso. 

Marko: Tem um debate interno das ciências humanas que tem a ver com esse descentramento do humano que vem desde pelo menos o Foucault, se não antes. Então não é um debate de agora. Mas ganha forma específica, ganha força nesse contexto. As críticas que eu conheço vão no sentido de que o termo antropoceno coloca o humano de volta no centro. O antropos volta a ser central e isso é um problema conceitual se a gente tá tentando com esse conceito falar de um descentramento do humano, de que o ser humano não é simplesmente separável dessas variáveis naturais, de fenômenos naturais. Que não é útil separar fenômenos naturais e sociais a priori. Você chamar de antropoceno, você pode facilmente recair na ideia do ser humano que causa impacto, não é? E separar ontologicamente o humano do não-humano, natural do social, etc. 

Yama: Isso que o Marko falou é uma contribuição importante do campo dos estudos sociais da ciência e tecnologia. Coisas sociais e naturais estão muito mais misturadas do que a gente costuma perceber. As mudanças do clima são um grande exemplo disso. Mas voltando ao Antropoceno, o conceito parece mesmo não estar estabilizado. Diante do risco de reforçar narrativas antropocêntricas, alternativas se acumulam, como reação. As noções de capitaloceno e de plantationceno, por exemplo, instrumentalizam as críticas à centralidade do humano e funcionam como uma forma de denúncia. Dessa perspectiva, a destruição geológica não é de origem propriamente humana, mas das práticas destruidoras que vieram com a ascensão do capitalismo e, no caso do plantationceno, da colonização europeia e da organização da agricultura à base de genocídios, monoculturas e da escravidão. 

Luiz: Para a professora Susana Dias, contudo, os diferentes nomes que os pesquisadores estão tentando dar para esse momento não são propriamente “alternativas”.

Susana: Os modos de nomear que estão surgindo, eu acho que eles não são alternativos ao antropoceno. Eu acho que eles estão junto com a noção de antropoceno compondo possibilidades de nomear o nosso tempo presente. Então capitaloceno, platationceno, por exemplo, são duas noções que pra mim mantém mais ou menos a mesma lógica do antropoceno que é a lógica do vamos dar um nome que denuncia as situações catastróficas que estamos vivendo.

Marko: O que eu acho interessante do capitaloceno, por exemplo, é você não colocar o ser humano no centro do debate teórico, metodológico, filosófico, mas colocar o capital, que é uma relação social, vamo dizer assim entre aspas, entre seres humanos, máquinas e uma divisão de atividades que foi extremamente poderosa para transformar o mundo e produzir o mundo que a gente habita e extremamente destrutiva. Então eu acho uma ideia fantástica que até renova a ideia a discussão de capitalismo, né?

Yama: No sentido de repensar o humano e as práticas capitalistas, Susana sugere que a noção de plantationceno é ainda mais interessante. 

Susana: Plantationceno traz, além do capitalismo, traz a questão da escravidão e as monoculturas, as plantations, então acho que é uma noção super potente pra pensar. 

Luiz: O fértil debate sobre nomear o nosso tempo, não se concentrou apenas em alternativas que, tal como o antropoceno, são denúncias. Outros nomes surgem para tentar lidar com o problema do antropocentrismo e mudar o olhar sobre como vamos encarar as catástrofes do nosso tempo. 

Yama: Uma alternativa mais filosófica é colocada pela pesquisadora estadunidense Donna Haraway, por exemplo, com o nome Cthulhuceno. A ideia dela é repensar o nosso tempo como presente continuado, em oposição a tempos geológicos, e na nossa conexão com a terra. Sai o antropos relativo ao humano e entra o ctnônico, relativo à terra, ao solo. Para ela, repensar nosso mundo passa por nos pensar mais como “terra”, como “húmus”, do que como humanos. Isso significa fazer justamente o caminho contrário do antropoceno. Ao invés de enfatizar o humano, sua proposta é enfatizar as relações multiespécie, porque o risco das catástrofes é compartilhado por todos os habitantes da Terra. Ainda há outros nomes em evidência, como o plantoproceno da antropóloga Natasha Myers, que propõe que nosso tempo presente precisa estar centrado onde surge a vida, o que a leva a dar essa centralidade para as plantas. Estas alternativas já operam numa outra lógica, como sugere a Susana Dias.

Susana: Então, são nomes que olham de uma maneira diferente, né? Eles não tão propondo uma denúncia. Eles tão propondo uma ação.  Assim como é o Vitaloceno, que é uma artista a Mariana Vilela, do Labjor Unicamp, ela propõe o Vitaloceno também passando por uma conexão com a noção de vida. Que… nos movimentaria. São nomes que partem da pergunta o que precisa nos movimentar nos próximos anos e não numa denúncia do que nos trouxe até aqui.  Porque o que a gente precisa é isso, né? Tornar o gesto de nomear parte do problema. Então eu  sinto isso, sinto que esses modos de nomear tão apresentando para nós criações de mundos. E também trazem alguns problemas de redução de mundos. A noção de antropoceno é uma noção que não apenas cria mundos, mas também reduz mundos e as críticas têm sido feitas nesse sentido, né? De tentar mostrar que essa noção tem limitações e por isso vão surgindo outras possibilidades. 

Yama: Outros nomes-denúncia e as alternativas que convidam para uma ação, contudo, não parecem ter sido capazes de competir com a força narrativa do antropoceno. A necessidade de criar termos comuns para a conversa interdisciplinar parece dar uma força desbalanceada para o antropoceno em comparação com suas alternativas. 

Marko: Quem se interessava ou já estava trabalhando nessa vertente mais inter ou transdisciplinar, eu acho que naturalmente se interessa por essa abertura que a discussão sobre antropoceno traz. Por outro lado, as pessoas não conseguem escapar do termo. Porque ele captura muito a imaginação então nos debates a gente vê essa dificuldade de você emplacar um novo termo. Eu acho que a crítica é importantíssima, mas não tem um outro termo que substituiu, na imaginação pública, digamos, né?

Luiz: Além das questões que o professor Marko Monteiro colocou, é preciso estar ciente que nem toda prática de pesquisa poderá ter tanta liberdade para a escolha de nomes. É o que me explicou a professora Susana Dias. Outra questão a se considerar é que para ela o antropoceno abre a possibilidade para falar de coisas que nem sempre é possível se falar quando se fala de mudanças climáticas, como mineração, racismo, extinção de espécies e tantas outras práticas destrutivas. 

Susama: Fico pensando assim, algumas pessoas, dependendo das suas práticas, elas podem escolher, ah eu vou usar essa, eu vou usar aquela. Isso é interessante. Você poder escolher, e poder criar outras. A Mariana, por exemplo né, essa liberdade de como artista criar uma nova maneira de nomear. Outras pessoas pelas suas práticas são forçadas a dialogar com determinados grupos. E, por exemplo, nós estamos ligados a grupos de climatologistas, engenheiros, agrônomos, e a gente é forçado a dialogar com eles, né? Então a gente pode até usar a noção de vitaloceno, plantoproceno, mas essas noções não vão criar uma possibilidade de diálogo com esses outros grupos. Então a noção de antropoceno para algumas pessoas é um encontro forçado. Você não pensa tão livre assim. Você é forçado, você é obrigado a manter o diálogo com essa noção e fazer com que dela proliferam outras possibilidades.  

Yama: A professora Julia Guivant até concorda que o conceito de antropoceno possa abrir possibilidades de diálogo entre cientistas naturais e sociais. Mas, talvez, o custo seja muito alto. 

Julia: O conceito é interessante porque, justamente, na medida em que você simplifica as diferenças entre as épocas, você pode pensar, bom, então isso pode ajudar ao diálogo entre disciplinas. Mas também, por outro lado, é tão geral que passa por cima de especificidades e leva a não ver assuntos que são altamente debatidos nas ciências sociais como a injustiça climática. Não? Quem é mais afetado, quem é menos afetado. Não somos todos afetados da mesma forma e por quê? E quem tem mais responsabilidades e quem tem menos responsabilidades. Quem deve ser apoiado e quem deve transformar suas práticas de consumo. Em termos de um diálogo assim geral, para mostrar o papel do ser humano na transformação do clima, vale. Mas, para pensar estratégias de mitigação ou de adaptação, mais imediatamente, precisamos pensar mais as especificidades de nossa época, de nossas regiões, de nossos locais. Os desafios são globais, sem dúvida, mas muitas das estratégias devem ser implementadas a nível local.  

Luiz: A professora também está descrente que o termo tenha grande importância para motivar a população a acatar sua denúncia. Mais uma vez, está em questão sua alta generalidade. Para ela, à exceção, talvez, de negacionistas que não estão convencidos na participação humana nas mudanças climáticas, são os apelos locais, de menor escala, que vão produzir as mudanças necessárias. É o que acontece nos bairros, cidades e rios que motiva a ação política ambiental da população, em sua opinião. 

Julia: Priorizo conceitos muito mais recortados. Muito mais singulares. Sem perder o geral. Mas o geral muitas vezes leva a pensar em leis naturais, não? Aplicadas à história da humanidade e isso é um risco enorme.  É importante construir conceitos e utilizar conceitos singulares sem perder uma perspectiva histórica, não? Mas não reduzir os conceitos a categorias geológicas exclusivamente. 

Luiz: Por fim, fica uma questão fundamental: até que ponto o potencial de cooperação compensa os riscos? Por um lado, parece mesmo ser um termo que permite algumas conversas entre cientistas e pesquisadores de diferentes áreas. Por outro, há riscos políticos e científicos no seu uso. 

Qual é o melhor caminho para se apostar em seguida, seja como cientista, seja como cidadão? Criar novos nomes? Disputar os sentidos do que pode ser o antropoceno? 

Yama: Dar nome para uma nova época geológica coloca muitas questões sobre as possibilidades de cooperação entre cientistas sociais, cientistas naturais, jornalistas, artistas, políticos e cidadãos em torno das mudanças do clima. Com o debate aberto, precisamos estar atentos sem deixar escapar os pontos comuns que nos trouxeram até aqui: as mudanças climáticas têm causas conhecidas e, se não podemos impedir seus terríveis efeitos, podemos reduzir danos. Se o conceito de antropoceno vai nos ajudar a reduzir danos é algo a se observar nos próximos anos. 

Yama: E você, acha que o conceito de antropoceno vai ajudar a gente nesse processo? Continue esse debate com a gente nas redes sociais do Oxigênio e no blog do GEICT. Acesse pelo site do Oxigênio em oxigenio ponto comciencia com m ponto br 

Um abraço e até a próxima. 

Esse episódio foi roteirizado, produzido e editado por Yama Chiodi. O Luiz Henrique Leal contribuiu como narrador e a supervisão foi feita pela Simone Pallone, coordenadora do podcast Oxigênio, e só pode ser realizado com o apoio da da FAPESP, através do programa Mídia e Ciência. 

Os sons utilizados foram retirados da base de loops do Garageband, exceto pela música Aerial, feita pelo Bio Unit e disponível para uso por licença Creative Commons. 

O Oxigênio tem o apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp e do Serviço de Apoio aos Estudantes. 

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