A insônia continua e a última esperança de Fabiano está na psiquiatria. Será que finalmente essa nova profissional poderá resolver o seu problema? Ou talvez o remédio que ele precise seja outro, ou alguém….
Este é o 8o episódio de Meu divã interior, um romance radiofônico, que é um projeto de extensão apoiado pela Pró-reitoria de Extensão e Cultura (PROEC), e realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp.
Roteiro
PENSAMENTOS DE FABIANO: A médica indicada pelo barbudo afeminado lacaniano, além de psicanalista, era psiquiatra. Não sabia exatamente o que isso significava tecnicamente, mas imaginava que haveria, por um lado, uma terapia analítica tradicional e, por outro, a possibilidade de tratamento medicamentoso. Havia um divã no consultório dela. Não sei por que eu nunca tive coragem de perguntar se podia me deitar nele. Sempre me sentava na poltrona de frente para ela. Se me deitasse no divã, teria torcicolo caso quisesse ver minha interlocutora. Vi em um filme que o divã pode ser usado justamente em determinadas circunstâncias em que o objetivo é que paciente e analista não se vejam e apenas escutem a voz um do outro. Eu queria experimentar qual é a sensação de conversar com um analista deitado em um divã. Mas nunca tive coragem de pedir isso a ela. Era uma senhora. Não idosa, mas mais velha do que eu, com uma visão moderna. De vez em quando, ela fechava os olhos e eu ficava pensando se era uma tática de concentração, se estava refletindo sobre o que eu dizia ou se era um momento de descanso das lamúrias alheias que ela se permitia. Às vezes fazia umas ponderações sobre coisas que eu falava, reforçando, com argumentos próprios, que as coisas que me incomodavam eram, de fato, terríveis e que, diante de tudo aquilo, estranho seria se eu estivesse bem. Será que faz parte da estratégia de uma terapia dizer aquele tipo de coisa para o paciente? Sempre achei que um psicanalista iria futucar as profundezas da nossa alma, soltando todos os nossos fantasmas, em uma espécie de exorcismo. Não os fantasmas reais do dia a dia, que assombram a nossa vida, aqueles que a nossa consciência é capaz de perceber e somos capazes de relatar, seja para um analista ou para amigos em uma conversa de bar. Eu imaginava que a análise ia me fazer ter acesso aos fantasmas que me habitam, os que não apenas estão em mim, mas também me definem e fazem parte do que eu sou e de como eu ajo no mundo. Sobre a questão dos relacionamentos, depois de relatar algumas tentativas frustradas, eu disse a ela:
FABIANO: Acho que as mulheres, por mais que estejam interessadas em alguém, não chegam a se envolver pra valer antes que aconteça um beijo.
PSIQUIATRA: Pode ser.
PENSAMENTOS DE FABIANO: foi apenas o que comentou. Achei que ela poderia ter sido menos vaga. Ela é mulher. Mas quem disse que as mulheres querem revelar aos homens o seu mistério? Uma hipótese que essa psicanalista levantou sobre o problema do sono é que ele poderia estar relacionado ao luto.
FABIANO: A última perda importante que eu tive foi da minha mãe. Mas isso já tem muito tempo. E eu acho que consegui tocar a minha vida. Claro que sinto a falta dela, mas não fico pensando nisso o tempo todo. O luto pode durar tanto tempo assim?
PSIQUIATRA: O luto não necessariamente está ligado à morte. Pode ser outro tipo de perda significativa em sua vida.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Freud entende o luto como um fenômeno natural da mente humana em reação à perda não só de um ente querido, mas de coisas que tenham proporções importantes para o enlutado. Segundo ele, trata-se de um processo consciente, pois no luto, a pessoa tem a noção exata daquilo que perdeu. – (fala junto com a psiquiatra)
FABIANO: O casamento também se desfez há muito tempo. Será que eu não superei isso até hoje?
PSIQUIATRA: Pode ser que você sinta muito a falta não daquela companheira, especificamente, mas de ter alguém do seu lado no dia a dia.
PENSAMENTOS DE FABIANO: De acordo com Freud, além de ser um processo lento e doloroso, uma das características do luto é a incapacidade de substituição do amor antigo por um novo amor. – (Fala junto com a psiquiatra)
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PENSAMENTOS DE FABIANO: Em uma das sessões de análise, reparei em um broche numa bolsa da psicanalista, em que se via #EleNão. Aproveitei o tema do meu cansaço físico decorrente das noites mal dormidas e falei a ela também do meu cansaço moral em relação a certas coisas. Eu já estava farto do clima político no Brasil e cogitava me mudar para outro país. Mas não queria ser garçom ou faxineiro no primeiro mundo. Não tinha ideia de que tipo de trabalho poderia ter fora daqui. E também não era mais um jovem para viver uma aventura, tinha que pensar em meu filho. Outro cansaço que manifestei a ela foi em relação ao mundo acadêmico no qual eu tinha me metido não por escolha própria, mas por força das circunstâncias. Eu me sentia um peixe fora d’água e achava que era preciso buscar algo mais apaixonante para mim, que me estimulasse e me desse prazer em realizar.
FABIANO: Além disso, eu sempre fiz escolhas que iam na direção contrária das escolhas da maioria das pessoas. (pausa) Eu não queria estudar os temas que a maioria das pessoas já estudavam. Não queria aderir às correntes teóricas mais aceitas. E chega uma hora que cansa nadar contra a corrente!
PENSAMENTOS DE FABIANO: Também mencionei alguns conflitos que tive no ambiente de trabalho. Muito provavelmente as pessoas com quem tive os desentendimentos devem considerar esses episódios uma coisa normal, corriqueira, e não devem ter se abalado tanto quanto eu. Não sei se era trauma do casamento, mas eu não queria mais brigar com ninguém, não queria ser maltratado por ninguém. Nem correr o risco de virar o monstro que viro quando alguém me maltrata ou é injusto comigo. Mas eu não expunha com clareza esse sofrimento. (pausa) Nada é só bom ou ruim. Mas se alguma coisa, seja um relacionamento, seja o clima político do país, o trabalho, está mais ruim do que boa, a gente tem que tentar fazer alguma coisa para mudar. (pausa) Às vezes, antes da sessão de análise, eu olhava para o alto do prédio onde fica o consultório da psicanalista e imaginava se seria possível ter acesso ao terraço, no ponto mais alto. E logo em seguida, lembrava dos meus gatos e do meu filho. Eles precisavam de mim. (pausa) Nunca mencionei isso a ela. Foram muitas sessões de análise até a médica decidir que eu necessitava mesmo tomar medicação para não comprometer as atividades cotidianas, porque o cansaço era grande. Ela tentou diferentes tipos de antidepressivos, embora dissesse que meu quadro não era de depressão. Demoramos um tempo para encontrar os que tinham melhor efeito na qualidade do meu sono e, sobretudo, na minha disposição no dia seguinte. (pausa) No capítulo V da Classificação Internacional de Doenças, dedicado a transtornos mentais e de comportamento, a depressão aparece mais como um sintoma de doenças como transtorno bipolar ou esquizofrenia do que como uma doença em si. Posso dizer, mesmo sendo leigo, que tinha parte dos sintomas da esquizofrenia: diminuição da interação social, da expressão de emoções e falta de motivação. Porém, sintomas mais significativos, como delírios ou alucinações auditivas, eu não tinha. Ninguém nunca relatou algum delírio meu. No caso específico da depressão, ela é descrita como um distúrbio mental que pode ser acompanhado por perda de interesse em atividades e pouca energia, o que pode afetar muito as relações familiares, o trabalho e o sono, entre outras coisas. Sei que o ovo nasceu primeiro que a galinha, mas o que teria surgido primeiro, o problema do sono ou os sintomas da depressão, mesmo que meu quadro não fosse depressivo? Eu não tinha dúvida que minha falta de energia vinha das noites mal dormidas. E com ela, diminuía também minha disposição e piorava o meu humor, o que inevitavelmente afeta as relações e o trabalho. O fato é que a medicação teve seu efeito positivo. Se não tinha propriamente o sono dos justos, ao menos sentia mais energia e disposição durante o dia.
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PENSAMENTOS DE FABIANO: Com a aparente melhora do meu quadro, as sessões de análise foram ficando mais espaçadas. Tanto que a psicanalista achou minha vida bastante movimentada quando contei de um caso – um reencontro. Coincidiu de sair, mais ou menos ao mesmo tempo, a publicação de um livro meu e o de uma amiga minha do tempo da graduação, a Helena. Combinamos um encontro para um dar seu livro ao outro. Ela sugeriu um restaurante vegetariano, mas mudou de ideia e propôs irmos a um lugar onde pudéssemos beber alguma coisa. Eu não sou muito de beber. E ainda tinha que me preocupar com o efeito da mistura da bebida com a medicação que estava tomando.
(sons de pub/bar)
Mas Helena estava tão disposta a encher a cara naquele dia, que resolvi chutar o balde e acompanhá-la. Quanto palavrão surgiu na boca dela embriagada que é tão doce nas redes sociais! A conversa foi muito animada.
HELENA: Porra! E quanto tempo faz que não nos vemos? Tempo pra caralho!!
FABIANO: Desde a faculdade…
HELENA: Vamos fazer um brinde!
(brindam)
Esperei ela fumar uma cigarrilha e então, quando voltou, eu disse que queria fazer uma coisa que tive vontade de fazer durante toda a graduação, mas não fiz.
HELENA: (ri) O que?
Beijei-a.
Eu não fui apaixonado por ela no tempo da faculdade, mas sempre quis beijar ela. Um mistério que não sei explicar.
Helena estava tão bêbada que nem se lembrava direito onde tinha deixado o carro; eu disse que a levaria para casa, eu não podia deixá-la sozinha naquele estado. Apesar da embriaguez, Helena foi capaz de me orientar até seu condomínio e indicar em qual vaga eu deveria estacionar. Ela colocou um colchão na sala e transamos loucamente. Achei que o fogo dela ia passar aos poucos, mas estava enganado. Helena queria sair de novo para dançar. Eu falei que não estava com tanta disposição como ela. Quando nos despedimos, pedi a ela que se cuidasse. No dia seguinte, Helena me contou que bateu o carro. Não se machucou, mas causou estrago. Não nos vimos mais. Acho que ela se envergonha de sua face oculta que me revelou naquele dia. Ou teve amnésia alcoólica e nada do que aconteceu entre nós teve qualquer significado para ela (pausa). Eu mantive o contato por mensagens, para tentar saber como ela estava. Entretanto, não insisti em um novo encontro. A própria Helena havia me encorajado a tentar aquilo que viria a ser um namoro: um reencontro com Raíssa, o meu primeiro amor, que durou praticamente toda a infância e sobreviveu às paixões que tive na adolescência. Era um sentimento que ficava adormecido e era sempre reavivado a cada novo breve encontro.
Depois de muitos anos sem nos vermos, retomamos o contato através de um grupo criado por familiares e amigos. Ela é do tipo de pessoa que trabalha muito.
(sons de teclado, empresa, telefone tocando)
RAÍSSA: Aham, faço questão de ter sucesso profissional e ser bem recompensada por isso, para ter uma vida de conforto e poder proporcionar o melhor para as minhas filhas.
Para mim, sempre foi mais importante ter tempo livre para estar com meu filho do que trabalhar alucinadamente para poder dar a ele o que o dinheiro pudesse comprar. Isso não é um mero detalhe que pudesse ser relevado. E outras coisas que foram aparecendo aos poucos desestruturaram nossa relação.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Depois que terminei esse namoro, decidi me concentrar no trabalho. Elaborei um projeto de pesquisa para ser desenvolvido em uma universidade do exterior e com todas as exigências burocráticas, esperei a demorada resposta ao pedido de bolsa. Foi parcialmente aprovado, mas não me deixei abalar com isso. Imagino que a psicanalista visse tudo isso como um norte que eu encontrei pra orientar minha vida. Tenho quase certeza que ela apostava todas as suas fichas no bem que me faria passar um tempo no exterior. E mesmo sem saber do plano que eu alimentava secretamente, sem falar a ela, de parar de tomar os remédios, recomendou, um pouco antes de minha viagem:
PSIQUIATRA: Se você for interromper a medicação, a mirtazapina pode ser suspendida a qualquer momento, sem nenhum problema, mas a quetiapina tem que ser tirada aos poucos, porque você pode sentir síndrome de abstinência.
PENSAMENTOS DE FABIANO: Assim como Alice, não acho que a psicanalista estivesse lendo meus pensamentos. Deve ter percebido algum sinal da minha intenção. Nas últimas semanas no exterior, comecei a diminuir as doses da medicação. Em seguida, passei a intercalar um dia com e outro sem. E, assim, fui tirando aos poucos os remédios. Sabia que eles estavam apenas mascarando o meu problema. Não estavam resolvendo. Desde que voltei ao Brasil, estou sem medicação. E o problema do sono voltou. Talvez até com maior força.
ENCERRAMENTO
HELENA CHISTE: Você acabou de escutar o primeiro episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC, Pró Reitoria de Extensão e Cultura e realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Esse projeto consistia na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico.
Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre.
No próximo episódio: O sono interrompido é um sintoma de uma outra interrupção mais importante na vida de Fabiano. Será que Alice finalmente encontrou a resposta que ele tanto procura? Fique com a gente!
Ficha técnica:
Adaptação de roteiro, Direção e Produção:
Antero Vilela e Helena Chiste
Atrizes / Atores, (por ordem de aparição):
Antero Vilela, como Fabiano
Geovana Mangiavacchi, como Psiquiatra
Débora Piccin, como Helena
Joyce Nobre Dourado, como Raíssa
Trilha sonora original:
Antero Vilela
Edição, mixagem e finalização de áudio:
Vitor Muricy
Apoio:
LABJOR, Podcast Oxigênio e Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp