Meu divã interior (episódio 2)
abr 18, 2023

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Neste segundo episódio de Meu divã interior, nosso protagonista Fabiano continua sua busca por uma solução para seu problema de insônia. A medicação prescrita pelo seu médico não fez efeito, ele começa a pensar que talvez ter alguém em sua vida poderia ser o remédio que lhe falta. Buscando relaxar, Fabiano se aventura em uma viagem ao litoral, lá ele conhece Márcia. Uma conexão astral paira pelo ar junto à maresia. 

Pensamentos de Fabiano: Quase cinco anos já se passaram desde que eu decidi procurar aquela clínica especializada em distúrbios do sono. Fiz exame de polissonografia. Eu passei a noite lá, com uma porção de eletrodos grudados na cabeça. Em nova consulta, o médico, um sujeito calvo, de fala sonsa, daqueles que cumprimentam a gente sem vontade, com um aperto mole de mão, comentaria o resultado do exame, que apenas confirmava o que eu já sabia.

Médico: Você desperta muitas vezes ao longo da noite e passa mais tempo no sono leve do que no sono profundo.

Pensamentos de Fabiano: Disse que tinha passado recentemente pelo trauma da separação, ele prescreveu um remédio e disse para eu retornar. Perguntei:

Fabiano: Não tem como atacar a origem do problema? Eu não quero ficar dependente de remédio. Ele respondeu:

Médico: As causas podem ser várias, não tem como determinar. A ideia é que seu organismo reaprenda, aos poucos, a dormir bem. A gente vai acompanhar a evolução e, à medida que for melhorando, a gente vai tirando aos poucos a medicação.

Pensamentos de Fabiano: Eu tinha duas escolhas: seguir a prescrição médica ou não. Mas aquilo era sério, e eu queria voltar a dormir bem.

Fui à recepção para marcar o retorno.

Recepcionista: A agenda dele para janeiro ainda não está aberta. Liga no começo de dezembro.

Pensamentos de Fabiano: Comecei a tomar o medicamento. Imaginei que não faria efeito logo de início, levaria um tempo. No começo de dezembro, liguei para a clínica.

Recepcionista: Ele vai estar de férias nesse período.

Fabiano: E o que eu faço?

Pensamentos de Fabiano: Liguei várias vezes pedindo esse retorno e nada de resposta.

Alice foi a primeira alternativa de ajuda profissional que procurei. Além do problema do sono, acrescentei algo para tentarmos resolver juntos: eu não queria continuar sozinho. Na época, eu estava apaixonado pela minha professora de yoga.

Alice: A mãe do seu filho apertava botões dentro de você que despertavam coisas ruins e essa professora de yoga aperta botões que despertavam coisas boas.

Fabiano: (ri) Como em Divertidamente.

Pensamentos de Fabiano: Descobri que a minha paz não vinha da yoga e nem da minha professora de yoga, por quem eu estava apaixonado. A paz estava dentro de mim e era despertada por ela.

Depois de ter contado isso a Alice, ao sair da terapia, liguei o carro e imediatamente começou a tocar no rádio “A paz”, de Gilberto Gil e João Donato.

(ligando carro)

Alice: O Jung chama isso de sincronicidade. – Ela me disse.

Alice: Jung afirma que a ligação entre os acontecimentos, em determinadas circunstâncias, pode ser de natureza diferente da ligação causal. Segundo ele, somos incapazes de imaginar acontecimentos inexplicáveis e sem relação causal e, por isso, geralmente admitimos que o acaso é suscetível de alguma explicação causal, e só pode ser chamado ‘acaso’ ou ‘coincidência’, porque sua causalidade ainda não foi descoberta”.

Pensamentos de Fabiano: Jung era um místico. No prefácio desse livro que está esse conceito, ele faz um agradecimento a uma colega que o ajudou com “o material astrológico”. Inspirado em Schopenhauer, Jung diz que a Astrologia e os vários métodos intuitivos de interpretação dos acontecimentos causais têm, todos eles, um denominador comum que ele procurou descobrir por meio de uma ‘especulação transcendental’”.

Sempre achei divertido ver como as pessoas, inclusive eu, se identificavam com algumas características gerais de traços de personalidade atribuídos a cada signo do zodíaco. Não faz muito tempo, pedi para uma amiga fazer meu mapa astral. Eu gostava de ouvi-la falar sobre astrologia e me colocava, na conversa, muito mais como uma pessoa questionadora do que cética. Ela parecia uma entendida no assunto. Certamente era uma interessada e estudiosa, mas percebi que o mapa havia sido feito a partir das ferramentas digitais de hoje em dia, o que talvez não seja nenhum demérito.

A minha identificação com alguns itens positivos era evidente: visionário, rebelde, futurista, sensível, sonhador, curioso… Curioso que a astrologia veja a rebeldia como algo positivo. De fato, é. Mas há quem ache o contrário.

Com alguns itens negativos, também havia identidade: dramático, precipitado, pretensioso, sem persistência, impaciente, disperso.

É difícil, para mim, pensar que a disposição dos astros no momento do nosso nascimento, possa ter alguma interferência nisso.

(Na praia) Pensamentos de Fabiano: Fazia pouco tempo que eu havia conhecido aquela amiga que fez meu mapa astral. Mônica tinha me convidado para ir com um grupo de amigos dela para a praia em um feriado que caía numa sexta-feira. Alguns eu conhecia, outros não. Márcia, a astróloga amadora, era uma das que eu iria conhecer nessa viagem. Fui sozinho.

Ao chegar conheci dois nerds, o Dado, daqueles que carregam um barril de chopp no ventre, e o Fred, enorme, cabeludo, com óculos fundo de garrafa. Cristina, que pegou carona com eles, eu já conhecia; ficou surpresa ao ver que Tereza estava lá, ela havia dito que não poderia ir à praia, mas lá estavam as duas.

Surpresa mesmo foi a que tive ao ver a Márcia pela primeira vez. Era a mais baixa do grupo, mas sua presença era magnetizante. Seus olhos castanhos me atraíam como um imã. Ninguém se lembrou de nos apresentar. Ela falou comigo como se já nos conhecêssemos. Descobri, tempos depois, que ela acredita em reencarnação. Uma de suas postagens dizia que:

Márcia: “tem gente que quando a gente vê pela primeira vez, não conhece, reencontra, é coisa de alma, de vidas passadas”.

Pensamentos de Fabiano: Eu não acredito nisso, mas certamente senti alguma coisa.

(Trovão) Pensamentos de Fabiano: Na manhã seguinte, o tempo não estava muito animador. Os nerds estavam mais interessados em beber do que nadar. E Tereza, em se reconciliar com Cristina.

( Som de notificações) Pensamentos de Fabiano: Indo para a praia, olhei no celular as mensagens que havia trocado com Mônica quando ela me convidou. Ela havia listado, entre os que iriam, quem é lésbica e quem é hetero. Márcia estava entre os heteros.

Esse pessoal é do tipo que não se contenta com a praia mais próxima. Além de andar meia hora de carro, ainda percorremos uma trilha cheia de altos e baixos até chegarmos ao ponto que eles queriam.

Márcia me ofereceu seu protetor solar. Uma fé inabalável de que o sol iria dar as caras. Foi a primeira a entrar na água. Fui em seguida. Logo depois, as outras duas corajosas entraram. (vozerio feminino)

Pela conversa, percebi que Márcia era bem mais nova do que eu pensava. A diferença de idade entre a gente era enorme. Mas conversávamos os quatro de igual para igual. Ou melhor, as três conversavam de igual para igual. Eu, como de costume, mais ouvia do que falava.

(Sons de Mar)

Na volta, quando alguns achavam que a gente tinha se perdido, o meu senso de direção ajudou a nos colocar no rumo certo.

No sábado, as três estavam decididas a ir à praia e também a uma cachoeira. (Sons de cartas) Fiquei com o resto da turma em casa, jogando cartas, para passar o tempo. Pelas fotos que nos enviaram o tempo abriu especialmente para elas, (Trovão) porque para os que ficaram, continuava fechado. O sorriso de Márcia em uma das fotos me fez sentir arrependimento por não ter ido com elas.

À noite, o pessoal estava decidido a achar algum barzinho com música ao vivo. Fomos de carro até o centro comercial. Raquel, mais uma vez, ficaria em casa. Mônica foi com o Dado e Márcia foi comigo.

Ficamos um tempo rodando até conseguirmos encontrar todo mundo. Enquanto Márcia tentava se comunicar com eles, vi a maçã na parte de trás do seu celular.

Fabiano: Quer ligar seu celular no som do carro, pra gente ouvir uma música? Ele só reconhece iPhone e iPod. Já tive um Apple que comprei de segunda mão de uma ex-aluna e instalei no carro um som compatível. Agora que não tenho mais, só dá para ouvir rádio.

Pensamentos de Fabiano: Márcia conectou o iPhone. Nando Reis, Cássia Eller. Seu gosto musical batia com o meu.

A busca demorada da turma pelo bar valeu a pena. 

(Sons de bar) O músico tinha um repertório que agradava a todos nós. Foi ali naquele bar que conheci os conhecimentos astrológicos da Márcia. Ficava prestando atenção ao que ela dizia a quem estava mais próximo dela, porque em bares, só conseguimos nos comunicar com quem está mais próximo de nós. Além de atraído pelo magnetismo dos seus olhos, a conversa me interessava. E achei uma brecha para me meter nela e atrair a atenção e os olhos de Márcia para mim.

Aí Tereza me chamou para o seu canto da mesa e insistiu que eu experimentasse sua bebida. Confessei a ela minha atração pela Márcia.

Tereza: “Sem chance”. – sentenciou ela.

Pensamentos de Fabiano: Na volta do bar, o pessoal ainda quis tomar vinho em casa. Márcia me ofereceu seu copo. Eu não tinha como recusar.

(Sons de cartas) Jogavam cartas e eu e ela só assistíamos. Senti seu pé tocar a minha perna por debaixo da mesa. Fechei os olhos, num êxtase. Não era um movimento de carícia. Só um toque. Depois de secarmos a garrafa de vinho, Márcia deu a ideia de irmos à praia. Quanta animação! Já estava bem tarde e só o Fred e a Tereza toparam.

Márcia: Você também vem?

Pensamentos de Fabiano: Como não ir?

(Sons de mar) Andamos descalços na areia da praia. A empolgação da Márcia era tão grande que sugeriu entrarmos no mar. Tiramos a roupa e ficamos, eu e o Fred, de cueca, e as duas, de calcinha e sutiã. Mas eu não estava aguentando de frio então não entrei no mar. Os três entraram. Depois de um tempo, Márcia saiu da água e veio em minha direção. Falou que o Fred tinha perdido os óculos no mar e estava tentando achar. Óbvio que não achariam nada no escuro.

Na manhã do domingo, contei para a turma que tinha a intenção de voltar antes deles. Perguntei para Márcia se ela queria voltar comigo. Ela topou.

(Música Casinha Branca e sons de carros e caminhões passando)

Pensamentos de Fabiano: Todo o repertório que ela tinha em seu celular me agradou durante a viagem inteira, inclusive os artistas que eu não conhecia.

Fabiano: Ela diz na música que queria ter na vida simplesmente uma casinha branca de varanda, um quintal e uma janela para ver o sol nascer. E você?

Márcia: Como assim?

Fabiano: O que você queria ter na vida?

Márcia: Acho que o mesmo que ela. Sei lá! Também queria viajar pelo mundo…

Pensamentos de Fabiano: De vez em quando, Márcia cochilava e eu percebia que não só os olhos dela me atraíam como ímã. Não me cansava de contemplá-la. Mas tinha que manter a atenção na estrada.

Márcia trabalhava na minha cidade, mas morava em uma cidade vizinha. Tinha pedido que eu a deixasse em um lugar onde pudesse pegar um ônibus, mas insisti para deixá-la em casa, não custava nada para mim. O sol já estava se pondo quando chegamos. Nos despedimos com um abraço. E foi só.

Ainda nos vimos rapidamente duas vezes. De vez em quando, interagimos um com outro pelas redes sociais, (Som de curtida) como no dia em que ela postou uma foto dela sentada diante de uma paisagem deslumbrante vendo o pôr do sol. Reagi com um coração, o tradicional, vermelho, sozinho, que numa rede social significa “curti” e em outra, “amei”.

E ela respondeu:

Márcia: “Não é maravilhoso?”

Fabiano: Concordei: “Sim! Assim como as coisas que você diz, as músicas que você curte! Você é maravilhosa!”

Márcia: “Você que é” – seguido de dois corações rosas. 

ENCERRAMENTO (Finalização + Ficha técnica) 

Você acabou de escutar um episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC, Pró Reitoria de Extensão e Cultura e realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Esse projeto consistia na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico. 

Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre. 

No próximo episódio Fabiano decide experimentar o Tinder. Ele conta tudo a Alice sobre suas experiências. Fique com a gente.

Até logo. 

Ficha técnica:

Adaptação de roteiro, Direção e Produção:

Antero Vilela e Helena Chiste 

Atrizes / Atores, (por ordem de aparição):

Antero Vilela, como Fabiano
Jonas Bíscaro, como Médico
Julia Rocha, como recepcionista
Helena Chiste, como Alice
Luppi Campos, como Márcia
Fabíola Morais, como Tereza 

Trilha sonora original, edição e mixagem de áudioAntero Vilela

EdiçãoVitor Muricy

Apoio:

Labjor, Podcast Oxigênio do Labjor e Secretaria Executiva de Comunicação.

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