Meu divã interior (episódio 4)
maio 16, 2023

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Este é o quarto episódio de Meu divã interior, um romance radiofônico, que é um projeto de extensão PROEC (Pró-reitoria de Extensão e Cultura) e realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. 

Neste episódio, Fabiano se interessa por uma de suas alunas de pós-graduação, tudo parece correr bem até não correr mais. São muitas diferenças, era evidente que não daria certo. E além disso, sempre aparece um ex pra atrapalhar… Mas ele não desiste e continua a sua busca por um amor.

PENSAMENTOS DE FABIANO: Por indicação da Alice, procurei uma médica homeopata. Para tentar solucionar o problema do sono. Tentamos dois remédios diferentes, sem nenhum efeito. Não me lembro exatamente quando e por que decidi suspender as sessões de terapia com a Alice. Acho que tem a ver com a minha falta de persistência em relação a certas coisas. Eu tentei duas vezes o vestibular para arquitetura e não passei. Poderia ter insistido, mas desisti. Justamente depois do segundo malogro, ofereceram-me um cargo na cidade em que meus pais moravam e eu decidi voltar a morar com eles. Acontece o mesmo quando tento ficar com alguém. se não dá certo nas primeiras tentativas, eu não insisto. Se a pessoa não quer, não consigo acreditar que há alguma coisa que eu possa fazer para ela mudar de ideia. Por isso, não insisto. Além disso, não sou cachorro para ficar abanando o rabo até conseguir atenção. Como eu não via nenhuma mudança nas noites de sono e nem na perspectiva de ficar de novo com alguém, devo ter achado que a terapia não estava surtindo efeito. (pausa) Algum tempo depois, procurei outra psicóloga que já conhecia de longa data e que não via há muito tempo, a Nadini. Ela se dizia especializada em questões de relacionamento. 

NADINI: Para o seu problema de sono, indico melatonina, um remédio fitoterápico…

PENSAMENTOS DE FABIANO: …Que também não surtiu nenhum efeito. Gosto dela como pessoa, mas como terapeuta, incomodou-me uma coisa que ela disse em uma das sessões. A pedido dela, eu estava contando uma das coisas que não deram certo no casamento. 

FABIANO: Tem vários outros motivos pra não ter dado certo, mas dá pra resumir a nossa relação pela falta de afeto, de carinho. Pra mim, essa é a base de um relacionamento. Se não fosse por mim, não havia afeto, não adiantava eu esperar isso dela. O exemplo que ela teve dos pais não era muito bom, eu nunca presenciei uma troca de carinho entre eles.

NADINI: É uma pena que você não tenha me procurado antes. Eu faço terapia de casal e poderia ter ajudado vocês no período difícil do relacionamento.

PENSAMENTOS DE FABIANO: (irritado) Por que fazer aquele comentário sobre o leite que já estava derramado? Eu tinha contado só a parte mais suave do que não tinha dado certo, tinha coisa muito mais pesada na história.

FABIANO: (neutro) A última coisa que eu queria na vida era voltar a viver com ela. Só não digo que não tínhamos nunca que ter ficado juntos porque meu filho não existiria.

NADINI: OK. Você disse que não quer ficar sozinho. O que você tem feito pra não ficar sozinho? 

PENSAMENTOS DE FABIANO: (irônico, agressivo) Retrucou Nadini, impassível, em sua saída pela direita de Leão da Montanha. (rugido de leão)

FABIANO: (segurando a irritação) Eu não sou muito de sair. Acabo só conhecendo novas pessoas nas aulas.

PENSAMENTOS DE FABIANO: Contei para Nadini sobre um quase namoro que tive com uma aluna minha de pós-graduação. Ela era professora em uma universidade particular. Mais uma Alice em minha vida. De todos os alunos da turma, a Alice era a que mais interagia comigo nas atividades extraclasse que eu propunha por e-mail e assim, fomos descobrindo afinidades em termos de visão de mundo (pausa). 

FABIANO: Você topa ir ao cinema comigo? 

PENSAMENTOS DE FABIANO: Perguntei um dia pra ela. Começou a resposta com um balde de água fria:

ALICE: Moro em outra cidade, Fabiano…

PENSAMENTOS DE FABIANO: Mas para minha surpresa, (ri) ela topou

ALICE: Mas com certeza gostaria, só peço que seja no sábado, depois do pôr do sol. 

PENSAMENTOS DE FABIANO: Demorei um tempo para descobrir o significado simbólico que aquilo tinha e eu desconhecia. Para alguns grupos religiosos, como os judeus e os adventistas, o sábado é um dia destinado a abrir mão de interesses pessoais, para dedicação completa a uma espécie de retiro espiritual, com orações, cantos e meditação. Quando nos encontramos na porta do cinema, achei que ela tinha exagerado na maquiagem. Por um lado, eu podia ver naquilo um sinal positivo, ela tinha dado importância ao encontro e achou que devia se arrumar. Por outro, o exagero, que me pareceu meio brega, podia indicar que as aparentes afinidades no campo das ideias não se estenderiam para todo tipo de coisa, como a preocupação com o visual, por exemplo. O que é normal, cada um é cada um. Depois do filme, ficamos conversando na praça de alimentação até os funcionários do shopping começarem a levantar as cadeiras e percebermos que tínhamos que ir embora, eles precisavam fechar. A conversa percorreu caminhos transcendentais, filosóficos, esotéricos, existenciais. A capacidade da Alice de transitar pelos mais diversos assuntos com desenvoltura e de sempre levar em consideração o meu ponto de vista de maneira incondicional, tanto nos momentos de concordância quanto nos de discordância, fazia-me pensar que a sua questão religiosa poderia não ser uma limitação para nós. Havia respeito mútuo e compreensão de ambas as partes. (pausa) Em retribuição ao convite para o cinema, ela me convidou para um concerto na sua cidade. Segundo ela, os músicos eram excelentes. Enquanto esperávamos o início do espetáculo, percebi que ela conhecia várias pessoas que chegavam para se acomodar na plateia. Deduzi que alguns seriam seus alunos. Peguei em sua mão. Ela suava. Mantive as mãos dadas assim mesmo, até começar o concerto. Era um espetáculo cantado, uma espécie de opereta. À medida que se desenrolava, percebi que o enredo era religioso. E pela reação da plateia em certos momentos, o evento musical parecia mais um culto. O público participava, em êxtase, numa espécie de catarse. Depois do concerto, conversamos um pouco sobre as atribulações sofridas pelo Saulo que virou Paulo. Embora eu não tivesse manifestado nenhum incômodo, era evidente que eu não tive nenhum tipo de reação catártica durante o espetáculo, como a maioria do público e, por isso, Alice tentou se desculpar por não ter me avisado antes que o tema seria religioso. Ela parecia muito preocupada em me convencer de que não era uma fanática religiosa. Baseado nas conversas que a gente já tinha tido, eu acreditava no que ela estava dizendo.

NADINI: Não tinha como dar certo. Mais cedo ou mais tarde, a questão religiosa geraria conflito

PENSAMENTOS DE FABIANO: (guardando a raiva) Como ela podia dizer uma coisa dessas sem conhecer a Alice, baseada só no que eu estava dizendo? E não contei nem metade da história. 

Fomos de novo ao cinema e dessa vez a aparência da Alice estava bem mais próxima do seu natural, o que me agradava muito mais. Dessa vez, a conversa na praça de alimentação foi antes do filme. Falei do meu filho. Ela reagiu muito tranquilamente. (pausa) Um dia, ao final da aula, Alice perguntou se eu queria almoçar com ela e outros alunos. Eu tinha deixado um filé de frango descongelando em casa, mas aceitei assim mesmo. Agimos com certo distanciamento durante o almoço. Eu era só mais um no meio do grupo e, como sempre, exceto nos momentos de aula, mais ouvia do que falava. (pausa) Depois do almoço, falei a ela que iria para casa para passar roupa e se ela quisesse, podíamos ficar conversando enquanto isso. Ela topou. Depois de falarmos de assuntos genéricos, perguntei o que ela achava dos nossos encontros e da possibilidade de ficarmos juntos.

ALICE: Eu já pensei nisso. É uma possibilidade a se considerar.

PENSAMENTOS DE FABIANO: Pouco depois disso, ela sumiu por um tempo. Mandei mensagens, mas ela demorou bastante a dar sinal de vida. Depois, explicou o motivo do silêncio: um ex que não via há muito tempo, e que tinha tido uma importância muito grande para ela, reapareceu do nada, sem aviso prévio. Aquela reaparição repentina virou a cabeça dela do avesso. Ainda tivemos três encontros depois disso. O primeiro foi para assistirmos, junto com alguns alunos dela, ao filme Gravidade. O enredo pode não ser lá essas coisas, mas as imagens do espaço são fantásticas. Nesse ponto, todos concordaram. Gente boa, aquela turma. E pelo jeito, também simpatizaram comigo. O segundo encontro foi um almoço que ela ofereceu para mim em sua casa. Alice já fazia planos para o doutorado. Conversamos sobre isso e sobre a possibilidade de eu fazer uma viagem com meu filho, mas eu não tinha tanto tempo disponível. Ela contou que esteve e ainda estava dividida desde o retorno do ex. Ele iria trabalhar no exterior e propôs que ela fosse com ele. Alice era muito orgulhosa da carreira que estava construindo e não queria largar tudo para viver uma aventura incerta. Ainda assim, estava dividida, mas disse que me escreveria por e-mail. Não escreveu. Eis que, então, dois meses depois recebo um e-mail gigantesco em que ela abria toda a sua alma, se despia como mulher, contava boa parte da sua história com o ex e, entre milhares de outras coisas, fazia perguntas sobre nós dois, eu e ela, o que eu achava, o que eu sentia. E dizia que eu tinha sido um tolo de não tê-la beijado e que se tivesse feito isso, talvez ela não tivesse ficado tão dividida quando o ex reapareceu. Fiquei um período atordoado, digerindo tanta informação. Uma resposta à altura para aquele e-mail gigantesco demandava um tempo de dedicação que eu não tinha tanto de sobra naquele momento. Além do mais, se ela não tinha cumprido a promessa de escrever, alguns dias de atraso na minha resposta não seria tão grave assim. Mas o ser humano age com dois pesos, duas medidas, e convence a si mesmo de que os pesos são iguais. Quando mandei uma mensagem sugerindo que seria melhor a gente conversar pessoalmente, Alice achou que devia tratar minha mensagem, que não demandava tanta reflexão assim, da mesma forma que – na interpretação dela, evidentemente, – tratei o seu gigantesco e-mail, com silêncio. Sem pensar que seu silêncio anterior havia sido ainda maior. Dali em diante, foram só desentendimentos e falhas de comunicação. Até ela decidir romper com qualquer tipo de relacionamento comigo. Uma das coisas que eu teria dito a Alice, caso ela tivesse dado uma chance, é que a fila anda, muita água já tinha rolado e eu estava, naquele momento, apaixonado pela minha professora de yoga. Não fazia sentido eu ficar tanto tempo parado, esperando que a história dela com o ex desse errado. E eu não sou egoísta a ponto de interferir na história dos dois, que tinha uma evidente importância para ambos, só para satisfazer o meu interesse pessoal. Desde que ela havia falado da volta dele e do quanto ele tinha sido importante para ela, eu só via a Alice como amiga e me relacionei com ela esse tempo todo como amiga. A outra coisa que eu teria dito é que ela também tinha sido uma tola de não ter me beijado. E se isso tivesse acontecido, não seria garantia nenhuma de que as coisas teriam sido diferentes quando o ex reapareceu. Sobre o beijo não ter acontecido, acho, sinceramente, que nenhum dos dois queria tanto assim. O primeiro encontro foi iniciativa minha; para mim, a coisa acontece quando as duas pessoas querem que aconteça. E digo isso não como uma utopia romântica. Antes de me casar foi a mesma coisa, minha sina é que sempre aparece um ex para atrapalhar tudo. Por que não luto em nome de um sentimento? Ou melhor: por que não lutam por mim? Por que eu tenho que lutar? 

PENSAMENTOS DE FABIANO: Tive outra experiência com uma aluna da pós-graduação, a Meire. Embora tenha sido muito mais breve e menos intensa do que essa com a Alice, foi profundamente traumática para mim. A ponto de eu não querer mais me envolver com alunas. Mas um dia, numa das aulas, pesquei no ar uma conversa sobre novela e me aproximei do grupo da Meire, onde o assunto surgiu. Ninguém procurou disfarçar, deviam me conhecer como o professor bonzinho, que não se preocupa com aquele tipo de transgressão. Dei meu pitaco sobre a parte que ouvi da conversa, comentando o capítulo a que eles estavam se referindo. 

MEIRE: Aí, professor! Noveleiro, hein! Quem diria?

FABIANO: Eu vejo só essa. As novelas das oito costumam ser muito dramáticas. E as das seis são muito água com açúcar. As novelas das sete sempre foram mais bem humoradas, mais alto astral. 

PENSAMENTOS DE FABIANO: Sempre me incomodei com os estereótipos do tipo futebol é coisa de homem e novela é coisa de mulher. Como um homem e uma mulher vão ter o que se dizer um ao outro se as coisas entre eles forem tão excludentes assim? Adoro saber que uma mulher gosta de futebol e não vejo mal nenhum em um homem gostar de novela. Em outra dessas aulas, a dispersão do grupo da Meire girava em torno de questões feministas. Fiz uma provocação: 

FABIANO: Acho ótimo que as mulheres lutem por igualdade de direitos, mas elas também têm privilégio em determinadas situações.

PENSAMENTOS DE FABIANO: Meire olhou incrédula para mim e eu expliquei, apontando para ela: 

FABIANO: Você, por exemplo, pode mostrar suas belas pernas sem problema, mas eu, quando fui aluno desse mesmo curso aqui, fui impedido de vir de bermuda, num baita calor de verão. Acontece o mesmo nos tribunais, as mulheres podem ir de saia, mas os homens não podem ir de bermuda. Eu acho isso uma discriminação.

PENSAMENTOS DE FABIANO: Ela estava de short. Os outros alunos do grupo pareceram achar graça no meu comentário. Meire não. Ainda assim, com minha participação na conversa, ficamos mais próximos. Ela aceitou minha amizade no Facebook. (barulhinho de aceitar no face) E eu a elegi como minha representante junto aos alunos durante um período de greve na universidade. Se eles decidissem aderir à greve, mesmo que os professores do meu departamento não aderissem, eu seguiria a decisão dos alunos. O semestre estava quase no fim e eu imaginei que seria muito provável que não a visse mais depois do fim das aulas. Por isso, sugeri de fazermos alguma coisa juntos. 

MEIRE: Hmm, bacana. Olha, eu vou pensar, tá? 

Depois, mandou uma mensagem convidando-me para participar de um debate sobre cortes de bolsas da Capes. (som de mensagem enviada) Não era bem isso o que eu tinha sugerido. Agradeci, dei uma desculpa e não fui. Ouvi no rádio o anúncio de uma peça de teatro sobre o Martin Luther King, uma das figuras que mais admiro. Perfeito! Uma ativista não poderia recusar um convite para uma peça com esse tema! Mas recusou. Fui sozinho. Fiquei encafifado com aquela recusa. Em nossas trocas de mensagens seguintes, depois de uns dias, insisti em saber o real motivo. 

MEIRE: Você é machista mesmo, Fabiano! Eu sabia!

PENSAMENTOS DE FABIANO: Excluí o perfil dela do meu Facebook na mesma hora, sem responder nada. E descobri que ela passou a me seguir. Aprendi que era possível bloquear as pessoas. Bloqueei a Meire. Muito tempo depois, fiquei pensando que a acusação de machismo talvez não fosse pelo convite para o teatro. Pode ser que ela já me achasse machista e, por isso, recusou o convite. Mas por que eu era machista? Por ter dito que ela tem belas pernas? Por dizer que os tribunais discriminam quem pode e quem não pode mostrar suas pernas? Não suporto fundamentalismo! Não tenho e nem quero ter paciência com pessoas radicais! De gente louca, eu quero distância!

Você acabou de escutar o primeiro episódio de “Meu divã interior”, um romance radiofônico que é um Projeto de Extensão PROEC, Pró Reitoria de Extensão e Cultura e realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Esse projeto consistia na adaptação do romance homônimo, escrito por Rodrigo Bastos Cunha, para ser escutado; ou seja, para um formato de áudio, que acabou virando este romance radiofônico.

Contado em série, com nove episódios, seguirá sendo postado semanalmente ao longo deste semestre.

Fique com a gente! No próximo episódio Fabiano dará continuidade às suas sessões de terapia com Alice. Ele volta à sua infância e reacesa memórias que talvez interfiram na vida que ele leva hoje. Alice sabe quais perguntas fazer.

Até logo.

Ficha técnica:

Adaptação de roteiro, Direção e Produção:
Antero Vilela e Helena Chiste

Atrizes / Atores, (por ordem de aparição):
Alice Persson, como Nadini
Antero Vilela, como Fabiano
Ana Clara Libman, como Alice
Mariana Lobo, como Meire

Trilha sonora original:
Antero Vilela

Edição, mixagem e finalização de áudio:
Vitor Muricy

Apoio:
Labjor, Podcast Oxigênio e Secretaria Executiva de Comunicação, da Unicamp

Veja também

Meu divã interior (episódio 1)

Meu divã interior (episódio 1)

Este é o primeiro episódio de Meu divã interior, um romance radiofônico realizado por alunos do curso de Artes Cênicas da Unicamp. Você vai conhecer Fabiano, alguém em constante procura de um amor que ainda não encontrou e que segue atravessado pela angústia de uma persistente insônia.