Neste novo episódio da série Termos Ambíguos, o verbete abordado é o “Politicamente Correto”. O termo começou a ser usado no século XVIII, nos Estados Unidos, para denotar visões e ações políticas e sociais consideradas “corretas e justas” . Como outros termos, aos poucos passou a ser acionado para defender ou justificar declarações que ofendem e agridem verbalmente pessoas negras, mulheres, pessoas LGBTQIA+, PCD’s e outras minorias. Humoristas têm sido grandes opositores do termo, alegando que o politicamente fere a liberdade de expressão. Ouvimos as especialistas Nana Soares, Joana Plaza e Anna Bentes sobre o uso e a desqualificação do termo.
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ROTEIRO
Gravação Léo Lins (Humorista): “Tudo fica divertido. Se alguém fala ‘Po, o que aconteceu ali? Um estupro’. Pesado. ‘Que que aconteceu ali? Um estuprito’ Divertido. Estuprito? Posso participar um pouquito? Só a cabecita”.
Tatiane: Essa fala foi dita pelo humorista Leo Lins pra ser engraçada, mas brincar com estupro, vamos combinar, não tem nenhuma graça.
Daniel: Em junho de 2025, Leo Lins foi condenado a 8 anos e meio de prisão por incitação à discriminação contra pessoas com deficiência. A decisão reconheceu que o conteúdo de suas piadas ultrapassa os limites do humor e configura discurso de ódio.
Gravação Léo Lins: “Assim como no meu show, também tem avisos: Show de HUMOR, apresentação de stand up Comedy, obra teatral, ficção, você está entrando em um teatro, está no canal do humorista Léo Lins; mas parece que as pessoas perderam a capacidade de interpretar o óbvio”.
Tatiane: A frase, que parece apenas uma defesa pessoal, ecoa um discurso mais amplo, uma tentativa de deslegitimar qualquer responsabilização por falas públicas sob a acusação de que vivemos numa “ditadura do politicamente correto”.
Daniel: Tenho certeza de que você já ouviu falar neste termo. Nas últimas décadas, o termo “politicamente correto” tem aparecido constantemente no debate político, e no imaginário coletivo atual. Mas afinal, o que ele realmente significa?
[INSERT TRILHA]
Tatiane: Pra você que ainda não nos conhece, eu sou a Tatiane…
Daniel: E eu sou o Daniel. E esse é o Termos Ambíguos, o podcast que mergulha nas palavras e expressões que se tornaram comuns no debate público atual.
Tatiane: Este projeto é uma parceria entre o podcast Oxigênio, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, e o Observatório de Sexualidade e Política, o SPW.
Daniel: A cada episódio, analisamos termos usados principalmente por vozes de ultra direita que recorrem a essas expressões para “tensionar, inverter e distorcer as disputas políticas”. Hoje, o termo é: politicamente correto.
Tatiane: Desde a primeira onda de propagação nos anos 2000, o termo politicamente correto se cristalizou como acusação pronta. No Brasil e em muitos outros países essa expressão é acionada para desqualificar as ditas “patrulhas que se opõem à Liberdade de expressão”, sendo invocado constantemente para defender ou justificar declarações que ofendem e agridem verbalmente pessoas negras, mulheres, pessoas LGBTQIA+, PCD’s e outras minorias.
Daniel: Por conta disso, nos últimos anos, o termo tem causado muitos embates, especialmente sobre os limites do humor, como no caso recente de Léo Lins.
Tatiane: Entretanto, é bom saber que o termo Politicamente Correto não é exatamente uma novidade. Já no século XVIII, nos Estados Unidos, o termo era usado para denotar visões e ações políticas e sociais consideradas “corretas e justas” .
Daniel: Mais tarde, no século XX, na União Soviética eram “Politicamente Corretas” as visões e ações que não se desviavam da “linha correta” do Partido Comunista.
Joana Plaza: “[…] como politicamente correto mudou de sentido ao longo do tempo.
Tatiane: Essa é Joana Plaza, professora do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários, da Universidade Federal de Goiás.
Joana Plaza: […] já foi usado como uma categoria, de uma certa etiqueta do debate público, que buscasse então tanto dar visibilidade para determinadas identidades quanto colocar intenção em determinados status de poder.
Daniel: Por exemplo, nos Estados Unidos, nos anos 60, estudantes universitárias começaram a nomear atitudes e comportamentos, tais como machismo e racismo, como discursos ou gestos “politicamente incorretos”.
Tatiane: Ou seja, quando as muitas formas de manifestação do status superior ou maior poder das ditas “maiorias sociais”, que podem ser pessoas brancas, homens machistas, começou a ser questionada, surgiu a oposição política ao uso do termo.
Daniel: Nos Estados Unidos, à medida que forças conservadoras ganhavam relevância, e ao mesmo tempo que se ampliavam as demandas feministas, mobilizações antiracistas e pelos direitos LGBTQIAP+, esse repúdio continuou crescendo. A partir da década de 90 o Politicamente Correto começaria a ser debatido nas universidades e em artigos acadêmicos.
Tatiane: Quando o debate chegou ao Brasil, no artigo Ruídos no diálogo político, publicado em 2023 no site do Instituto Humanitas Unisinos, o antropólogo Luiz Eduardo Soares, argumentou que essa repulsa estava diretamente ligada à misoginia, ao racismo e à homofobia presentes nas raízes da sociedade brasileira.
Joana Plaza: Essa expressão foi uma das primeiras, provavelmente porque já lá na década de 90 você começa a ouvir gente usando negativamente o termo. Porque essa é uma maneira de disputar a linguagem [..]
Daniel: Linguagem. Este é o nó da questão!
Joana Plaza: Dizer que a linguagem pode ser usada a favor de ações diferentes do que ela inicialmente tinha sido usada não é nenhuma novidade, porque a linguagem é esse campo de ação, e esse campo de disputa.
Daniel: Mas por que a linguagem é disputada? Qual o poder que ela tem e onde ela se encaixa na discussão sobre o Politicamente Correto?
Tatiane: A professora Anna Bentes é doutora em Linguística e professora do Departamento de Linguística da Unicamp vai nos dizer como linguagem e politicamente correto se entrelaçam.
Anna Bentes: Quando você fala de politicamente correto, você está falando de categorização social. Então, a nossa reflexão sobre a linguagem sempre vai recair sobre o modo como a gente categoriza os outros. O politicamente correto é pensado muito para a garantia das relações sociais dentro de certos padrões fundamentalmente, o politicamente correto foi inventado, entre aspas, para tentar regular as relações sociais na direção de maior empatia social. Ele está na perspectiva da sociedade, quando você quer que essa sociedade se comporte de maneira a evitar, elaborar, por meio da linguagem, um conjunto de preconceitos. A linguagem exibe esses preconceitos de forma muito explícita.
Daniel: Em 2004, com ambição de enfrentar a questão da violência e do preconceito inscritos na linguagem, o governo federal, por meio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, lançou a publicação “Politicamente Correto e Direitos Humanos”. No exercício compilava palavras e expressões correntes, buscando explicar por que elas eram ofensivas e deviam ser evitadas.
Tatiane: Os próprios organizadores da publicação assumiram publicamente que o título era provocador, justificando essa escolha pela urgência de dar visibilidade ao problema.
Daniel: Num contexto em que o repúdio ao “politicamente correto” ganhava força entre setores mais à direita e já circulava amplamente nas primeiras redes sociais, a reação foi imediata. A publicação ficou conhecida como “cartilha do politicamente correto”, sendo ridicularizada e criticada como um “manual” típico de um governo de esquerda. Desde então, sedimentou-se a analogia entre “politicamente correto” e “censura esquerdista” ou “violação injustificável da liberdade de expressão”.
Nana Soares: Foi mais ou menos em dois mil e nove, dois mil e dez, que a gente sedimentou a polarização esquerda e direita, pelo menos nesse campo, em que ficou muito nítido que quem usava o politicamente correto como acusação era de direita, se dizia de direita ou, no mínimo, se dizia contra a esquerda e uma suposta ditadura da esquerda, e encontrou no politicamente correto uma ferramenta para conseguir enquadrar essa crítica e conseguir defender o seu suposto direito absoluto de falar o que quisesse.
Tatiane: Essa que fala agora é a Nana Soares. Ela é jornalista e pesquisadora com foco em gênero e sexualidade e foi autora do verbete “Politicamente Correto” do Pequeno Dicionário.
Nana Soares: Os críticos do politicamente correto sempre o colocam em oposição à liberdade. O politicamente correto é a censura em oposição à liberdade de expressão. Como a liberdade vem sendo enquadrada hoje, eu tenho direito. Como se fosse um direito absoluto. Eu tenho o direito de falar o que eu quiser. É uma isenção de responsabilidade. E se eu não vou ser punido por isso, eu posso falar o que eu quiser contra quem eu quiser e errado é censura. É policialesco dizer que eu estou me excedendo que eu não posso falar o que eu quero, então é sempre enquadrado nos termos da censura como uma isenção de responsabilidade ou como liberdade total. No processo de pesquisa para o dicionário, a gente viu isso, as palavras que eram mais associadas, pelo menos quando ele era mencionado no Congresso, eram: patrulha, censura, ditadura, cancelamento ainda não tinha tanto, mas é sempre nesses termos e isso já estava no nível de Congresso, então isso já estava no nível de política institucional.
Esse é um debate que, no Brasil, acabou sendo muito enquadrado nesses termos e que têm tudo a ver com o papel da linguagem de novo, porque quando essas pessoas eram que esses humoristas, eram questionados…
Tatiane: Como no caso do Léo Lins…
Nana Soares: Em geral, tinha a resposta de “mas é só uma piada”, então, assim é como se minimizasse a linguagem, como se a linguagem apenas reproduzisse e não criasse sentidos e reforçasse opressões, não nada.
Tatiane: É importante ressaltar que o Politicamente Correto é também questionado pelo campo progressista. Afinal, será que mudar a linguagem seria a solução para o fim da violência e preconceitos?
Nana Soares: A grande delicadeza do politicamente correto é que ele tem questionamentos super legítimos de serem feitos. Acho que tem problematizações a serem feitas, mas que não é esse o uso que se deu cotidianamente no Brasil, que ele é acionado como acusação. Por um lado, tem uma parte dos críticos do politicamente correto, inclusive críticos de esquerda progressistas, por exemplo, o Stuart Hall, que tem um texto maravilhoso sobre isso, “OK entendemos, tem o poder de visibilizar pela linguagem, mas será que essa é a ferramenta? Será que esse é o jeito? Será que isso basta?”
Daniel: Aqui existe uma diferença essencial: questionar a linguagem para dirimir a violência e os preconceitos, não é o mesmo que difamar ou ridicularizar. Acusar, perseguir e proibir o “politicamente correto” não facilita em nada esse debate necessário.
Nana Soares: As críticas válidas ao politicamente correto e por válidas, eu quero dizer que são críticas. São questionamentos, não são acusações. O que os defensores vão dizer é que ninguém disse que isso é suficiente, mas que visibilizar a primeira etapa, você precisa visibilizar para convidar para a reflexão. É importante entender o uso que ele tem hoje, de acusação, e quem é ofendido com a visibilização de opressões ou quem fica incomodado com a visibilização de opressões.
Daniel: Quem se incomoda com opressões sendo visibilizadas e questionadas, claro, é quem tem maior poder ou privilégios. A oposição ao politicamente correto funciona como uma estratégia política de defesa desse poder e desse privilégio. Essa é uma artimanha sagaz da extrema direita, como explica Joana Plaza.
Joana Plaza: Várias expressões têm sido capturadas pela direita, para tentar dar conta disso, que foi mais ou menos consolidada no debate público. As estratégias vão tentando então desmontar o sentido que é dado por essas palavras, um sentido que seria mais democrático ou mais aberto à crítica e à tensão do status quo. E a direita fez tenta transformar isso numa espécie de imposição contra mudanças sociais.
Tatiane: Desfigurar o sentido original do politicamente correto, fazendo dele uma categoria acusatória simplifica a complexidade das questões inscritas na linguagem. Bloqueia o debate sobre elas. E esse é um bloqueio que compõe o estratagema mais amplo da guerra cultural movida pela extrema direita.
Joana Plaza: A direita simplifica. E a simplificação, além de tudo, convergiu com o campo do digital, que também colabora pra que a linguagem, quanto mais simplificada, mais rapidamente circule. Porque a linguagem simplificada dá mais engajamento. Ela produz a possibilidade de mais gente, que não acompanha o debate, entrar no debate sem entrar, ou seja, apenas ecoando as simplificações que estão circulando.
Daniel: É importante dizer isso com todas as letras: Hoje, os discursos e performances em torno ao “politicamente correto” são uma peça fundamental do repertório dessas forças facilmente amplificável nos meios digitais, pois gera curtida, comentário, compartilhamento e consequentemente, monetização.
Joana Plaza: A própria infraestrutura do digital está conectada então, com essas mudanças do debate na cena pública. Porque nenhum desses ambientes digitais foram pensados para circulação livre de ideias. Eles foram pensados e planejados para um modelo de negócio [22:43]. De fato, você tem estratégias para a tomada de atenção. Existe uma economia dessa circulação que a gente não pode desconsiderar.
Tatiane: Este foi o sexto episódio da série Termos Ambíguos, realizada em parceria com o Oxigênio, a partir do material do Termos Ambíguos do debate político atual: Pequeno Dicionário que você não sabia que existia, coordenado pela Sonia Corrêa. Esse é um projeto do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) e do Programa Interdisciplinar de Pós-graduação em Linguística Aplicada da UFRJ e contou com vários autores na produção dos verbetes.
Daniel: A apresentação do episódio foi feita pela Tatiane Amaral, doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, e por mim, Daniel Faria, estudante do curso de Midialogia, na Unicamp, roteirista e editor do áudio desse podcast. As entrevistas foram feitas por mim, pela Tatiane, pela Stella Brucha e pelo Valério Paiva.
Tatiane: A revisão do roteiro foi feita pela Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio, pela Nana Soares, da equipe de Comunicação e Pesquisa SPW, por mim, Tatiane, e pela Sonia Corrêa, coordenadora do projeto Termos Ambíguos, Pesquisadora Associada da ABIA e Co-Coordenadora do SPW.
Daniel: Aproveitamos a oportunidade para contar aos nossos ouvintes que esta série Termos Ambíguos recebeu a menção honrosa do IV Prêmio Rubra de Rádio Universitário, organizado pela Rede Brasileira de Rádios Universitárias (Rede Rubra). Agradecemos à Rubra e aos jurados pelo reconhecimento ao nosso trabalho.