#98 – Temático Memórias: Episódio 1 – O Palácio
jul 30, 2020

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Este episódio do Oxigênio traz a primeira parte de um programa que vai tratar das memórias traumáticas. Para introduzir o tema,  no entanto, o Bruno Moraes, a Caroline Maia e o Vinicius Alves começaram falando sobre as memórias, mostrando o que são e como funcionam, como constituem a identidade, questões abordadas sob o ponto de vista da Biologia, da História e até dos games ou indústria cultural. Para trazer explicações consistentes, o trio conversou com a neurobiologista Sophia LaBanca, com a bióloga Juliana Carlota Kramer Soares e com a historiadora Ana Carolina de Moura Delfim Maciel. Roteiro, apresentação e edição ficaram por conta do Bruno, que teve a colaboração da Caroline e do Vinicius na apresentação e elaboração do roteiro, e do Gustavo Campos na edição. A coordenação do Oxigênio é de Simone Pallone.

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Sophia LaBanca: A identidade é construída através das memórias. Daí você pega a questão da mortalidade também ligada à memória.

William Berger: E a porta de entrada das memórias no nosso cérebro, é uma região do cérebro que tá alí do lado da amígdala, que é o hipocampo.

Juliana Carlota Kramer Soares: Então eu acho que o grande desafio de quem estuda a memória é tentar entender como esse processo ocorre. O que acontece no nosso cérebro quando a gente aprende algo novo?

Ana Carolina de Moura Delfim Maciel: Tem uma citação da Frances Yates, no livro “A Arte da Memória”, que eu gosto muito. Que é: “a arte da memória é como uma escrita interior”.

Carol: Como funciona a nossa memória, e o quanto essa ligação com o passado constrói a experiência do momento presente?

Vinícius: Qual a diferença entre se lembrar de uma situação específica e se lembrar de uma informação ou uma técnica aprendida?

Bruno: E como diferentes ciências enxergam essas relações, e o que elas têm a nos dizer sobre o que nos constitui como pessoas e como parte de uma sociedade?

Vinícius: Qual a relação entre memórias ruins e o trauma, e o quanto da superação desse trauma depende da superação da memória?

Carol: O Oxigênio de hoje é o primeiro de dois capítulos voltados a entender a relação entre o trauma e a memória, e nessa parte inicial vamos nos concentrar na questão da memória em si: o que ela é, como se forma, e como NOS forma. Eu sou Caroline Maia…

Vinícius: Eu sou Vinícius Alves…

Bruno: E eu sou o Bruno Moraes. E começa agora: “Memórias: Episódio 1 – O Palácio”

Vinícius: A ideia para este episódio veio de um artigo sobre a extinção de memórias traumáticas, mas a primeira entrevista do programa foi completamente acidental.

Bruno: Pois é. Nós já estávamos discutindo a possibilidade de fazer um programa baseado numa publicação de neurociência sobre a extinção de memórias traumáticas e procurando algumas fontes. Daí, num domingo qualquer, depois de terminar a faxina de sempre, eu fui checar meu WhatsApp e vi que minha amiga Sophia LaBanca, neurobiologista e divulgadora científica, que já foi da equipe do Oxigênio, tinha mandado mensagem, falando que tinha terminado de jogar os dez títulos da série de videogames Kingdom Hearts.

Carol: O que o Bruno não esperava é que, nessa conversa despretensiosa de domingo, o tema desse programa, que já estava em produção, iria dar as caras.

[Trechos de Conversa]

Bruno: “Po, e isso nem é tão difícil de fazer, né, cara?”

Sophia: “Então, né, Bruno? Eu concordo com você que não é algo difícil de se montar…”

Bruno: “Ah, entendi! Eu achei que tinha sido exatamente o contrário…”

Sophia: “Mas enfim, está sendo boa essa conversa com você, porque está me ajudando a elaborar um pouco essas questões da temática. Eu acho que realmente, o… Pensando agora nessa nossa conversa, acho que o ponto principal é a memória…”

[Fim da Conversa]

Bruno: Pois é… Para quem não conhece, Kingdom Hearts é uma série de jogos de RPG criada pela lendária Squaresoft, empresa responsável pelas séries Final Fantasy e Chrono, em parceria com a Disney. A história de Kingdom Hearts acompanha o Sora, um jovem humano que é puxado para uma outra realidade, o Reino governado pelo… Rei Mickey. Eu fui perguntar para a Sophia a respeito dos temas principais da história da série, já que eu conheço bem pouco do mundo mais recente dos jogos. Ela logo achou que eu estava procurando uma brecha pra zoar o enredo famosamente complicado e cheio de voltas da série.

Bruno: Não, eu nem estou falando de ser necessariamente complicada, é porque são duas empresas que constroem histórias que são muito focadas em temas, né? A Square, pelo menos os jogos deles que eu joguei até hoje, tem várias coisas que… Ou os arcos dos personagens são focados num tema central ou tem diversos pequenos arcos, tipo no Chrono Trigger, né? Em que cada um deles traz alguma coisa, algum aprendizado, assim… E a Disney nem se fala, né?

Vinícius: Entre áudios e mensagens digitadas, o Bruno e a Sophia começaram a ver que, de todos os temas que moviam a história da série de jogos, tinha um assunto recorrente. Um assunto que talvez fosse o ponto central da narrativa. A Sophia disse que…

Sophia: Se tivesse que pegar uma… Uma temática para definir Kingdom Hearts, eu acho que definiria pela memória… Que… Acaba juntando tanto a questão da mortalidade quanto a questão da amizade quanto a questão da identidade. Tudo gira em torno da memória. Você pega todo o arco da questão da identidade, de eles criarem uma identidade própria… A questão dos Nobodies, etc. A identidade é construída através das memórias. Toda a questão da amizade também, quando a amizade é mantida através das memórias dos momentos bons. Você liga se eu der spoiler?

Bruno: Eu não liguei. Mas não se preocupa não, a gente não vai revelar nenhum ponto crucial do enredo neste episódio. Essa primeira parte é só pra levantar alguns dos questionamentos sobre a relação entre memória, identidade e realidade que o jogo levanta para, a partir daí, entrarmos mais a fundo na ciência da memória.

Carol: É o caso dos Nobodies que a Sophia cita. Esses personagens são os ecos de pessoas que tiveram sua essência… O “coração”, na história, separados do resto do ser, e os nobodies são o que resta da pessoa original. Sem as memórias originais, que ficaram no coração, eles se tornam pessoas praticamente independentes, apesar de terem alguns ecos de quem foram antes da separação. Nobody vem do inglês, e significa literalmente ninguém.

Sophia: Então, veja bem… Até o nome… Eles são ninguém quando não têm memória e se tornam uma pessoa quando têm memória. Então, assim… Dá pra perceber bastante essa temática de que a sua identidade é definida pelas suas memórias. E acho que isso é bem interessante quando você pensa de um ponto de vista filosófico, porque é uma coisa que eu até coloquei na introdução da minha tese. Que a minha tese de doutorado foi sobre o efeito da privação de sono na memória, e quando eu começo a falar sobre as memórias, eu cito lá que o John Locke considerava que a nossa identidade é definida pela memória. Era uma discussão que eles tinham na época, se a sua identidade era definida pela sua personalidade ou pela memória, e ele defendia que era definida pela memória. Então tem assim… Consonância na… Tá, tudo bem, é na filosofia ocidental, mas tem.

Vinícius: Essa aproximação com a filosofia ocidental não é exclusividade de Kingdom Hearts, e a relação entre memória e identidade aparece em muitas outras obras de ficção.

Carol: É o caso das histórias do autor de ficção científica do Século XX Phillip K. Dick, como “Lembramos para Você a Preço de Atacado”, que deu origem ao filme “O Vingador do Futuro”, onde a tecnologia que permite apagar e reescrever memórias faz com que o protagonista comece a questionar sua própria identidade. E a própria realidade como um todo.

Bruno: E não dá pra esquecer da importância das memórias na percepção da realidade dos replicantes do universo de Blade Runner, também derivado da obra do Dick.

Vinícius: Essa relação íntima entre a memória e a percepção da realidade também aparece em vários pontos de Kingdom Hearts, e o destaque que a Sophia fez tem a ver com os momentos do jogo em que a história dos protagonistas criados pela Square se cruza com os personagens do Bosque dos Mil Acres, da franquia do Ursinho Pooh.

Bruno: O Pooh, como muitas obras da Disney, veio de uma série de livros infanto juvenis. Mas em algumas das versões feitas pela Disney, os próprios personagens do Bosque dos Mil Acres vivem dentro de um livro, e esse também é o caso do Kingdom Hearts.

Carol: Em um ponto na história dos jogos, o protagonista Sora e seus dois companheiros inseparáveis vivem aventuras no Bosque dos Mil Acres, e elas ficam registradas nas páginas do tal livro que abriga o bosque. Depois, quando as memórias que o Ursinho Pooh e seus amigos do bosque tinham do Sora começam a ser esquecidas pelos personagens do bosque, elas também começam a sumir das páginas do livro. É a realidade se reescrevendo a partir da perda das memórias. O Bruno comentou com a Sophia que…

Bruno: É super metafórico isso, né? Memórias que você suprime tecnicamente nunca aconteceram e, se, ao longo da vida inteira, elas nunca vêm à superfície da consciência, assim, você nunca vai saber que certas coisas aconteceram com você. E eu penso muito sobre o quanto isso não é verdadeiro também pra estados alterados da mente, sabe? Desde o próprio estado de consciência durante o sono, no qual o seu corpo está recebendo informação sobre o que está acontecendo à volta, mas você não está, é… Processando essa informação de uma maneira consciente, e, portanto, é uma parte imensa da nossa vida em que a gente não… A gente tem uma dificuldade de lembrar mesmo, porque, até mesmo o conteúdo dos sonhos, que é o que está mais, é… Aparentemente, o que está sendo apreendido mais pela sua percepção, né? Pela sua atenção… E, mesmo assim, é muito difícil reter muita memória do que está havendo. E… Ou seja, é uma parte da nossa vida que a gente não se lembra. E essa metáfora do… Do… Do caso do Ursinho Pooh aí é muito legal porque é uma representação direta da… Dessa coisa da sua realidade ser transformada pelas memórias que você… Com as quais você interpreta ela, né?

Vinícius: A relação entre o que nós lembramos conscientemente e o que, apesar de estar gravado em algum ponto do nosso cérebro, também é uma forma de lembrança, também é uma forma de diferenciar as memórias. Com base em insights de áreas como a psicanálise, e em fenômenos observados diretamente no cérebro, a ciência contemporânea enxerga e discute cada vez mais a importância daquilo que é inconsciente para se compreender a mente como um todo. Por exemplo…

Sophia: Tem a separação entre as memórias implícitas e explícitas. Nós temos muito mais memórias implícitas do que explícitas. Você vai falar da questão da cognição propriamente dita, tomada de decisões, etc… É… Muito mais implícito do que explícito. Até a nossa percepção… Muita coisa é implícita. Então, pra te dar aí alguns exemplos… Tem um fenômeno chamado blindsight, que seria, no inglês, então, visão cega, né? Um paradoxo. O que é esse fenômeno? Você vai lá e pega uma pessoa que é cega, mas ela é cega não por causa de dano nos olhos, ela é cega por causa de dano no córtex occipital. Essa pessoa, se você pega, coloca ela na frente de uma tela com quatro quadrantes, e fala pra ela “tem aqui, o lado superior esquerdo, superior direito, inferior esquerdo e inferior direito. Em qual deles está a luz?” e mostra a luz, a pessoa consegue acertar que a luz apareceu, sei lá… No quadrante inferior esquerdo. Mas ela não está vendo. Porque… conscientemente, pelo menos. E por que isso acontece? Porque, por mais que, conscientemente, ela não tenha mais a visão por causa de um dano no cérebro, outra região do cérebro… Muito provavelmente o tálamo ainda está conseguindo processar, de uma maneira inconsciente e passa essa informação para ela.

Sophia: E daí tem a questão da memória implícita e explícita, que é um caso clássico, que sempre se fala é o caso do H. M., que foi um paciente, Henry Molaison… Ele já morreu, então divulgaram o nome real. Que ele tinha um caso severo de epilepsia, e daí fizeram uma cirurgia pra corrigir isso e nessa cirurgia tiraram o lobo temporal dos dois lados do cérebro. Funcionou no sentido de “ele não tinha mais epilepsia”, mas se descobriu, através dessa cirurgia que causou um caso gravíssimo de amnésia anterógrada… Então, amnésia retrógrada é quando apaga as informações anteriores, e amnésia anterógrada é não fazer novas memórias. Então, ele não perdeu nenhuma memória de antes da cirurgia. Mas, depois da cirurgia, ele não formava memórias novas. Então a memória dele durava questão de segundos, era… Era uma Dory humana. Mas o que eles perceberam? Que eram só as memórias explícitas, declarativas, que a gente chama. Ou seja, conscientes. Então o… É… Ele conhecia uma nova pessoa e daqui a cinco segundos ele já se apresentava de volta. Mas as memórias implícitas, aquelas inconscientes, ele ainda mantinha.

Bruno: É bastante difícil, especialmente para nós seres humanos que temos uma consciência tão complicada e marcante, entender o sentido por trás da existência desses mecanismos inconscientes. Mais ainda, entender porque eles são tão importantes para a nossa percepção da realidade e, às vezes, passam por cima da parte consciente, das tais memórias explícitas.

Sophia: Do ponto de vista da psicologia cognitiva, o que se fala com relação a isso é que a… o nosso inconsciente é capaz de processar muito mais informações, muito mais rápido do que no nosso consciente. Então é por isso que seria “útil”, digamos, ter esses dois sistemas. Do ponto de vista da neurobiologia, e vale lembrar que as duas coisas não se anulam… Essas duas interpretações, elas na verdade podem até ser vistas como complementares… Se pensa nisso mais num sentido evolutivo. Em que você vê que todas as regiões do cérebro que fazem esse processamento inconsciente são regiões do cérebro mais antigas, do ponto de vista evolutivo. É o sistema límbico, é o tálamo, o tronco encefálico, etc. Enquanto esse processamento consciente se dá todo no neo-córtex. Então é o córtex occipital, o córtex temporal, o córtex frontal, e assim por diante.

Vinícius: Para entender melhor como o aprendizado e a memória são armazenados no cérebro, entrevistamos a bióloga Juliana Carlota Kramer Soares, que passou toda a sua pós-graduação, do mestrado ao pós doutorado, estudando os mecanismos da memória. Atualmente, Juliana é professora substituta da UNIFESP e também professora efetiva da Universidade Ibirapuera.

Bruno: A Juliana conta que fez biologia na graduação, movida por um interesse e curiosidade gerais a respeito da vida. Mas assim que começou a estudar mais a fundo a fisiologia…

Juliana Carlota: As matérias relacionadas com o cérebro, a neurociência, foram o que foi despertando o interesse. E eu acabei me interessando pela neurociência e, em especial, por um tema, que é a memória. Que era a coisa de tentar estudar como a gente adquire informações, como a gente se lembra das coisas, né? Tudo o que acontece no nosso dia a dia. Inicialmente, o meu interesse era mais no comportamento animal, e como os animais aprendiam… E, ao longo do tempo, a gente vai expandindo, ampliando o nosso leque de interesses e hoje em dia a gente tenta… Quer saber também o que está acontecendo com o ser humano. Então, durante o meu mestrado, meu doutorado e o meu pós-doutorado, eu segui estudando mecanismos de memória. Então tudo o que, no nosso dia a dia é considerado uma memória, então… Desde… Não só o que a gente aprende lá na escola, não só a gente lembrar onde deixou as chaves do carro, mas também lembrar como dirigir um carro, como a gente anda de bicicleta, né? Esses atos… Tudo isso foi aprendido em algum momento. E tudo isso a gente sabe que é armazenado lá no nosso cérebro. E o meu interesse é especificamente em como as nossas células nervosas se organizam para manter essas informações.

Bruno: Mas essas questões não foram as primeiras a interessar a Juliana durante a graduação, não. A neurocientista conta que, no princípio, ela se apaixonou pela ideia de observar o comportamento dos animais em seus hábitats, e entender o que estava acontecendo no campo.

Carol: O fator que mudou a direção da carreira de pesquisa da Juliana não tinha tanto a ver com o objeto de pesquisa em si.

Juliana Carlota: Então uma motivação pessoal é que eu tinha uma filhinha que, na época, tinha uns dois três anos e para mim era inconcebível deixar ela em casa e partir para uma jornada de campo. Então, eu descobri, durante a graduação, tendo algumas aulas de etologia, principalmente, que era possível estudar o comportamento dos animais em laboratório. E isso me despertou muito interesse. Porque, de início, eu achei que eu ia conseguir ficar das oito às cinco no laboratório e poder voltar pra casa tranquila depois. Ter um horário de trabalho, entre aspas, né? Mas, à medida em que eu comecei a fazer o mestrado e fui estudando, eu vi que não tinha como ficar das 8 às 5, e aí a gente vara a noite ou passa sábado e domingo… Foram vários e vários finais de semana no laboratório, cuidando dos animais.

Vinícius: A possibilidade de estudar o comportamento em laboratório, sem precisar se deslocar para o campo, foi a saída para essa jovem pesquisadora continuar sendo também uma mãe participativa.

Bruno: Esse caminho abriu as portas para o estudo da memória, e para outros aspectos da cognição e do comportamento de várias espécies animais, incluindo a nossa.

Juliana Carlota: Além de estudar as memórias de uma forma geral, já há uns dez anos eu comecei a me preocupar ou me interessar também por esses aspectos moleculares envolvidos com as memórias. O que a gente acredita, ou o que se acreditava mais fortemente e ainda está nos livros didáticos quando falam de memória, é que, quando a gente aprende algo, ocorreria um fortalecimento das conexões entre um neurônio e outro, né? Entre uma célula nervosa e outra. E esse fenômeno é chamado de potenciação de longa duração, ou LTP, do inglês long term potentiation. E essa era a ideia, que toda vez que você aprende algo ocorreria esse fenômeno de LTP. Então isso foi bem difundido durante muito tempo. Tem estudos em animais que mostram esse processo, né? Mas, principalmente, estudos que a gente fala que são estudos in vitro. Você consegue registrar, você tira uma fatia do cérebro do animal e você consegue fazer estudos, coloca um eletrodo em algumas regiões e você mede esses… A gente chama “potenciais evocados” ali. O que está acontecendo, o disparo daquelas células. E a gente vê que a comunicação entre uma célula e outra foi fortalecida. No animal in vivo… Só tem, até hoje, desde 2006, um único estudo que viu isso ocorrendo em tempo real: quando o animal executava uma tarefa de memória, você tinha um disparo de neurônios. E aí, quando ele é colocado no mesmo ambiente onde ele aprendeu a tarefa, no dia seguinte… Você registra esse mesmo padrão de disparos.

Bruno: Nossa! Ficou complexa a história! Quando falamos em “epigenética”, estamos falando de mecanismos que alteram a função de genes específicos, mas que não são dependentes da sequência do gene no DNA. Esses mecanismos são dependentes da ação de várias moléculas, que podem aumentar, diminuir ou até mesmo parar completamente a expressão de alguns genes. A Juliana detalha melhor alguns exemplos que facilitam a distinção entre a genética — focada mais nas sequências do DNA — e esses mecanismos externos à sequência do gene em si.

Juliana Carlota: Então, já há algum tempo, existem várias evidências científicas mostrando que os hábitos de vida, o ambiente social em que a pessoa está inserida… Tudo isso pode modificar o comportamento dos genes. E é isso que o campo da epigenética estuda: as pequenas mudanças químicas que ocorrem no DNA e nas proteínas que envolvem o DNA. Então eu acho que um jeito, também, de dar um exemplo nisso aqui, para a gente entender a diferença entre genética e epigenética… É mostrar que, por exemplo… Gêmeos idênticos carregam o mesmo material genético. Mas eles exibem algumas diferenças nas suas características. Então, um exemplo, cor da pele. Então, se um deles tomar mais sol… Um morar na praia e o outro morar numa região mais fria e que, praticamente, nunca faz sol, um vai ter a pele mais bronzeada do que a do outro. Então, essas diferenças vão se acentuando com o passar dos anos, de forma que o genoma, o código genético, ele permanece idêntico, mas o epigenoma acaba sendo diferente ao longo do tempo. Porque as experiências que cada um vai passar são diferentes, e é o que vai tornar cada indivíduo único.

Carol: O estudo da epigenética também mudou a forma como a ciência passou a entender o chamado “dogma central da biologia molecular”.

Vinícius: Uma sequência da Biologia Molecular, ainda ensinada por muita gente por aí como se fosse um dogma, é a de que o DNA tem a informação para produzir o RNA, e este por sua vez orienta a montagem de proteínas. Mas a epigenética vem mostrando que outras moléculas também estão envolvidas nessa regulação, e as próprias sequências de RNA podem mudar antes de serem lidas para formar uma proteína. Além disso, já faz certo tempo que se sabe que nem todo RNA dá origem a uma proteína: alguns deles são os chamados RNAs não codificantes.

Juliana Carlota: Mas eles não estão ali à toa. Eles têm um papel de regular a expressão das proteínas. Então eles não codificam para uma proteína nova, mas eles regulam a expressão dessas proteínas. Então alguns desses RNAs não codificadores são chamados de microRNAs, porque é uma molécula um pouquinho menor do que um RNA tradicional. E a função desses microRNAs é justamente de inibir a expressão de algumas proteínas. Então o papel regulatório dessas moléculas é muito grande.

Bruno: Essa ativação e desativação é apenas um dos muitos mecanismos epigenéticos que podem estar envolvidos no fenômeno da memória. A Juliana comenta que…

Juliana Carlota: Eu tenho interesse por outros mecanismos epigenéticos, mas, no momento, é esse o que eu venho trabalhando um pouquinho mais com ele. Qual o papel desses micro RNAs na formação das memórias. Então, por exemplo, quando um evento de aprendizagem ocorre, quando a gente aprende algo, a gente acredita que os mecanismos epigenéticos, eles aparentemente inibem alguns genes que prejudicam ou não favorecem a memória, enquanto, simultaneamente, eles permitem a ativação de genes que vão favorecer a expressão dessa memória. Então meio que essa é a ideia desse mecanismo regulatório. Porque a gente tem, no nosso genoma, no nosso código genético, cerca de 20 mil genes em cada célula. E todos esses genes não estão trabalhando o tempo todo. Então você tem, dependendo da célula, da região e da função que ela desempenha, alguns genes estão sendo expressos e outros não. Então, uns genes trabalham e outros não. E a ideia é tentar ver quais são os mecanismos que modulam isso, quando um gene vai ser expresso e quando não vai ser.

Bruno: Mas o que o grupo de pesquisa do qual faz parte a neurobiologista mais estuda são aqueles processos de potenciação de longo prazo. Eles tentam entender como funciona a ativação coordenada dos neurônios no processamento de informação e na transformação dessa informação em uma memória. Tentam também entender o que acontece com esses neurônios quando essa memória é relembrada, e quando ela é esquecida.

Carol: A Juliana comenta que, mais recentemente, o envolvimento dos neurônios nesse processo do armazenamento e expressão das memórias começou a ser compreendido por um ângulo que leva em conta pequenos grupos de neurônios. Os mecanismos de plasticidade sináptica, ou seja, o fortalecimento ou enfraquecimento da conexão entre neurônios, onde ocorre a transmissão de informação, começaram a ser analisados na escala desses grupamentos, e não par a par, e…

Juliana Carlota: Esses grupos é que seriam responsáveis por mediar esses processos de aprendizagem e memória. Então você não tem… A ideia é que, assim… A gente não tem uma memória armazenada em um neurônio. Não é isso que acontece. A gente tem redes, né? Ou pequenos grupos que são ativos, que estão ativos quando a gente tem que aprender ou quando a gente tem que recordar uma informação. E aí a gente também tem sobreposição desses grupos. Então tem um neurônio desse grupo A aqui que participa de um tipo de memória, e aí tem um outro neurônio do grupo B que também participa… Então, isso também pode ocorrer. Mas, no geral, são pequenos grupos que seriam seletivamente ativados aí.

Carol: Outra classificação importante para o estudo da memória é a separação entre as memórias de situações específicas e um outro tipo de memória, que não funciona bem como uma lembrança. A Sophia já comentou um pouco a esse respeito, mas a Juliana explica essa diferença e traz um exemplo da própria pesquisa.

Juliana Carlota: As memórias, por exemplo, de dirigir um carro ou andar de bicicleta, isso são memórias chamadas “implícitas”. Já essa memória de “onde eu deixei as chaves do carro”, essa memória de localização, é uma memória “explícita”, ou “declarativa”, que eu posso declarar e recordar verbalmente, de forma consciente. Ao passo que dirigir um carro, a gente precisa demonstrar, através da habilidade, né? Então tocar um instrumento musical, por exemplo. Você aprendeu isso em algum momento, então isso é considerado uma memória. Mas é uma memória de uma habilidade, que você só consegue mostrar através desse desempenho. Então tem uma tarefa que a gente faz em laboratório, por exemplo, que se chama “condicionamento de piscar de olhos”. Você faz um pareamento entre um som e um sopro de ar na face, nos olhos. Então, cada vez que vem um sopro de ar a gente pisca, né? Então eu dou um som e um sopro de ar. Então você condiciona a pessoa a piscar. E esse piscar é inconsciente. Então, se eu… Depois de vários pareamentos, de várias tentativas, se você dá só o som, sozinho, a pessoa vai piscar mesmo sem ter o sopro de ar. O que é curioso é que pacientes que sofrem de amnésia têm o condicionamento preservado mas eles não têm a memória consciente de que eles passaram por esse treino. Então, se você pergunta “você já esteve aqui no laboratório? Você já passou por essa experiência?”, a pessoa vai falar que não, que é a primeira vez. Mas ela já tem o condicionamento ali.

Bruno: OK, esse foi o ponto de vista das ciências biológicas. Mas e outras áreas do conhecimento, como elas enxergam a memória?

Carol: Para entender melhor como as memórias se relacionam com a história e como as diferentes versões no resgate dessas memórias são importantes, entrevistamos Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, que é historiadora e documentarista. Ana está a frente da Coordenadoria dos Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa (COCEN) e é docente e pesquisadora do departamento de História na Unicamp.

Vinícius: Ana Carolina gostava de história desde o Ensino Médio, mas nunca tinha pensado em ser historiadora. Era apenas um gosto pessoal, compartilhado com seu pai, que também não era historiador.

Ana Carolina: Então a gente conversava muito sobre isso e realmente era uma das disciplinas que eu mais apreciava durante a minha formação escolar.

Bruno: Foi a vontade de ser diplomata, à época uma carreira que poderia dar sequência à formação no Direito ou na História, que a levou a dois caminhos. O primeiro foi começar a graduação em direito e ver que não tinha muito a ver com ela. O segundo foi começar o curso de Graduação em História pela Unicamp, e…

Ana Carolina: Já logo no primeiro semestre do curso de história, eu comecei a perceber que aquela história que eu gostava, que eu apreciava no Ensino Médio não era a história que nós estudávamos na universidade. Especialmente na Unicamp, porque o curso de história da Unicamp é muito voltado para essa dimensão da construção narrativa. Então conseguimos ali desconstruir esses temas que são enfim ensinados nas escolas mais tradicionais e pensando então como que se escreve a história. Não é por acaso que o primeiro livro que eu li do Marc Bloch era justamente pensando o que é história, como se constrói história, que forças que são acionadas quando se faz história.

Vinícius: Com essa descoberta de outras formas de se enxergar o registro histórico, a carreira de diplomata deu lugar a outros interesses. Como, por exemplo, o interesse pelo cinema documental, que levou Ana Carolina a dirigir documentários e a registrar relatos sobre o passado em vídeo.

Ana Carolina: Esses documentários audiovisuais que eu fiz entre o intervalo do mestrado e do doutorado eram sobre atrizes do cinema brasileiro dos anos 50. O que eu queria era me aproximar das trajetórias de vida dessas atrizes, eram atrizes que estavam esquecidas, que na época já estavam na casa dos seus 70, 80 anos. Elas não tinham permanecido na cena nem cinematográfica, nem teatral, nem televisiva. Então eu passei a me aproximar dessas atrizes e das trajetórias de vida, fazendo uma narrativa onde eu pudesse alinhavar os relatos delas né, os relatos de cunho autobiográfico com os filmes e com os recortes da imprensa etc. Então esse projeto era um projeto que eu ia abordar várias atrizes, mas por dificuldades de encontrar financiamento, eu acabei fazendo dois documentários e não dando continuidade a esse projeto. O primeiro documentário foi sobre a atriz Vera Sampaio que se chama “Amor é um lugar vazio”, e o segundo se chama “Eliane” que é sobre a atriz Eliane Lage. Todos esses filmes estão disponíveis em num link, em um canal que eu tenho no Youtube que é meu nome completo – Ana Carolina de Moura Delfim Maciel. Ali tem a maioria dos documentários e dos projetos audiovisuais que eu realizei.

Bruno: A historiadora nos conta que a relação entre a memória e a história…

Ana Carolina: É uma relação bastante controversa, por muito tempo a história ela esteve justamente atrelada a uma noção de testemunho, ou seja, aquele que narra presenciou os eventos, então tinha essa perspectiva. Determinado narrador viu aquilo, então ele pode relatar, efetivamente fazer história. Eu estou falando aí dos primórdios daquilo que nós denominamos História. É interessante também um exercício mnemônico que se chama “Memory Palace”, que é uma técnica ancestral cuja origem remonta ao poeta grego Simónides. É, eu estou falando de 477 antes de Cristo e ele teve a prova de que era detentor de uma memória fabulosa porque reza a lenda que durante um banquete, o teto desabou e matou todos os convidados, a maior parte dos convidados do jantar, e o Simónides tinha saído momentaneamente do ambiente e escapou ileso dessa tragédia. E ele acabou se tornando testemunha para o reconhecimento dos cadáveres porque por meio desse exercício mnemônico ele tinha memorizado a posição de cada um dos convidados à mesa. Então segundo a Frances Yates que é uma autora que eu gosto muito, que eu posso dizer que é uma das minhas maiores referências nesse assunto ligado ao tema da memória. Yates diz que foi justamente esse episódio macabro que fez com que ele fosse tido como um inventor da arte da memória.

Carol: Com o avanço do Século XX, o peso do positivismo científico no estudo da História foi aos poucos dando espaço para que a construção tanto dos relatos e documentos quanto da própria literatura acadêmica reconhecesse cada vez mais a influência da subjetividade.

Ana Carolina: E o que nós sabemos hoje no limiar do século XXI é de que não há dicotomia entre história e memória porque na virada do século XIX para o século XX, quando éramos ainda dominados por um olhar cientificista da história, muitas vezes positivista, não podia ter espaço para subjetividade. A história tinha que ser pretensamente isenta. Por sorte, ao longo do século XX e com todos os marcos que tivemos na história da humanidade que redimensionaram o olhar da questão da história em si, da própria questão do indivíduo na história, nós fomos nos libertando desse viés cientificista, até porque não existe um documento isento. Não é porque um documento foi redigido e depositado em um arquivo, que ele é isento, quer quiser, tudo são versões, tudo são visões, inclusive oficiais né. E com o advento da história oral, principalmente em meados do século passado, nós passamos a dar o protagonismo às minorias.

Bruno: Ana Carolina comenta que essa preocupação com a voz de minorias e com a incorporação de relatos orais, feitos por pessoas não necessariamente inseridas no contexto acadêmico ou da atuação política, trouxe a importância de trajetórias individuais e pontos de vista subjetivos para a História.

Ana Carolina: Isso sem dúvida redimensiona a história e o que nós sabemos hoje é que o passado é redigido, ele é rememorado ou ele é esquecido. O que importa é que o passado é algo que nós construímos no presente. Então não tem um passado que espera passivamente que determinado historiador avalie. É sempre uma construção do presente, é sempre um olhar do presente.

Carol: O tal “Palácio da Memória” também tem um exemplo na ficção, o que mostra a diversidade possível de histórias sobre aspectos diferentes da memória.

Ana Carolina: Eu gostaria de indicar para os que não conhecem uma série que se chama “Sherlock” que é baseado no livro de Conan Doyle sobre o Sherlock Holmes. Nessa adaptação o personagem, ele tem um mecanismo de memória que é denominado “mind palace” ou “memory palace” que seria um palácio mental ou um palácio da memória, aonde o detetive revisita o seu passado. É como se fosse um exercício psíquico, então ele mergulha nesse espaço mental e consulta arquivos de dados, textos, imagens que estão ali armazenados. É muito interessante, é muito ousado imaginar que você pode mergulhar no seu subconsciente e encontrar vestígios, documentos nessa técnica de memória né que fica como um mapa mental. E nos remete também à técnica mnemônica que eu mencionei do Simónides que é justamente essa ideia de que você visualiza, você registra e a partir dali você revisita esse passado.

Carol: O Oxigênio vai ficando por aqui, mas esse não é o fim da nossa aventura pelas memórias. Em quinze dias estreia o segundo capítulo, onde nós vamos finalmente entrar na questão que motivou esse programa!

Bruno: Gostou do episódio de hoje? Então comenta nas nossas redes, ou recomenda pra alguém que também se interesse por essas questões de memória (ou de videogame, quem sabe?)

Vinícius: O programa de hoje foi roteirizado pelo Bruno Moraes, com colaboração de Caroline Maia e minha, Vinícius Alves.

Bruno: Cada um de nós gravou de sua própria casa, pra mantermos o isolamento social, e os trabalhos técnicos também foram feitos remotamente. Quem assumiu a edição dessa vez fui eu, com colaboração da Carol, do Vinícius e do Gustavo Campos.

Carol: E não se esqueça de seguir o Oxigênio nas redes sociais. Oxigenionoticias no facebook e @oxigeniopodcast no instagram, tudo junto e sem acento, e oxigenio_news no twitter.

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Novas descobertas sobre evolução humana sempre ganham as notícias e circulam rapidamente. Mas o processo de aceitação de novas evidências entre os cientistas pode demorar muito. Neste episódio, Pedro Belo e Mayra Trinca falam sobre paleoantropologia, área que pesquisa a evolução humana, e mostram porque ela é cheia de controvérsias e disputas.

# 171 – Adolescência – ep. 2

# 171 – Adolescência – ep. 2

Alerta de gatilho: Este episódio da série “Adolescência” trata de temas difíceis, como depressão, ansiedade, impulsividade e sentimentos ligados às relações familiares, entre eles conflitos entre pais e filhos e também como lidar com essas questões. Ao falar destes...

#169 – Depois que o fogo apaga – Parte 2

#169 – Depois que o fogo apaga – Parte 2

Seguimos falando sobre o processo de recuperação de museus e acervos que pegaram fogo no Brasil. Quais são as etapas até a reabertura? Quem participa desse processo? Ouça como está sendo o trabalho no laboratório da Unesp em Rio Claro, o Museu Nacional do Rio de Janeiro e o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.

#168 – Depois que o fogo apaga 

#168 – Depois que o fogo apaga 

Incêndios como os que ocorreram no Laboratório de Biociências da Unesp de Rio Claro, no Museu Nacional e no Museu da Língua Portuguesa causam a perda de material valioso de pesquisa e de espaços de trabalho e convivência; e como é o processo de reconstituição dos lugares e dos acervos?