#95 Quarentena – Envelhe(ser)
jun 18, 2020

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Nesta pandemia, os cuidados com os idosos precisam ser redobrados! Questões sobre as necessidades especiais, o distanciamento social e as políticas públicas necessárias para assistir essa parte da população são discutidas nesse terceiro episódio da série Quarentena. Foram entrevistados os especialistas: Karina Gramani Say, fisioterapeuta e professora do departamento de Gerontologia da UFSCar; Marco Túlio Cintra, médico geriatra, professor da UFMG e presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia em Minas Gerais; e Maria Santos, filha da Dona Joana (81 anos) e muito experiente no cuidado de pais idosos. 

Carol: Desde que passamos a existir, atravessamos as mais diferentes fases da vida. Vida essa com início, meio e fim. Nascemos necessitando de cuidados alheios. Depois, ao crescer, nos tornamos independentes. Mas ao envelhecer, uma parte da independência vai embora e a necessidade de cuidados alheios volta, em maior ou menor intensidade.

Em tempos de pandemia do novo coronavírus, o cuidado com o outro se torna ainda mais importante, especialmente com aqueles que já atingiram a terceira idade. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a OMS, essa fase se inicia por volta dos 60 anos, variando entre os países. No Brasil, a estimativa de vida é de cerca de 72 anos para os homens e 79 para as mulheres, segundo o IBGE. Essa diferença é chamada de sobremortalidade masculina, e as razões que definem esses números são várias, entre elas as causas não naturais, como a violência e os acidentes de trânsito. Mas se por um lado temos observado diversos familiares preocupados com seus entes de mais idade, de outro vemos um crescente retrato do abandono.

Carol: Você está ouvindo o QUARENTENA. Eu sou a Carol e no episódio de hoje falaremos sobre a velhice em tempos de pandemia.

No conto “Feliz aniversário”, a escritora Clarice Lispector retrata a velhice e as relações familiares. Descrevendo o ambiente da comemoração dos 89 anos da dona Anita, Clarice ressalta algumas situações que, às vezes, chegam junto com a idade: a presença familiar por obrigação, a falta de colaboração entre os filhos e a inversão de papéis.

E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito “89″. Mas ninguém elogiou a idéia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!” — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados:  

 

Happy birthday to you / Parabéns pra você / Muitas felicidades / Muitos anos de vida

Carol: Vemos que a dona Anita do conto chegou aos 89 anos, uma idade já acima da expectativa média de vida para as mulheres brasileiras. Segundo o IBGE, cerca de 14% da população brasileira é composta de idosos, um número que está por volta de 30 milhões de pessoas. Falamos tanto sobre envelhecer, mas o que de fato significa isso? A palavra da vez está com a Karina Gramani Say do departamento de gerontologia da UFSCar.

Karina: Primeiro é importante a gente entender que velhice é uma fase da vida – a fase mais madura da vida – mas ela é mais uma fase da vida assim como a infância, a adolescência, a vida adulta e a velhice. Então é importante que a gente entenda que desde o momento que a gente nasce a gente tá num processo de envelhecimento, que inclui passar por todas as fases da vida e atingir a velhice. Aqui no Brasil e em países subdesenvolvidos é considerado idoso a pessoa a partir dos 60 anos de idade. Já nos países desenvolvidos, idoso é considerado acima de 65 anos. Por que essa diferença? Porque a gente tem características relacionadas ao nosso acesso à saúde, às condições de vida,que fazem com que as pessoas no Brasil e em países subdesenvolvidos tenham condições de envelhecimento menos favorecidas que os países desenvolvidos.

Carol: Muitas vezes quando falamos em idosos pensamos na imagem de um aposentado. No entanto, 8% dos brasileiros ainda trabalham após os 60 anos. Com o aumento da qualidade e expectativa de vida, muitas dessas pessoas continuam ativas profissionalmente. Estão dando aulas nas universidades, atuando na política, na área da saúde e exercendo muitas outras profissões que nem daria para mencionar. Mas por que, então, nós vemos pessoas aos 60 anos tão fragilizadas e, do outro lado, pessoas tão ativas?

Karina: Se a gente entender esse processo de envelhecimento e o quanto a gente precisa se cuidar ao longo da vida tem muito a ver com isso de chegar a velhice estando bem disposto, estando independente para as atividades de vida diária…. Então o que é importante é que a gente entenda que quanto mais a gente manter bons hábitos de vida ao longo do ciclo da nossa vida, nós vamos envelhecer com melhores condições físicas, mentais, bem-estar. E esses bons hábitos de vida incluem – além de alimentação, cuidados com saúde e atividade física – também outras dimensões, com a boa relação social e familiar – ter amigos, participar da sua comunidade, seja indo em igrejas, tendo grupos de amigos – como também ter outras dimensões de lazer e espiritualidade. Isso tudo vai nos ajudar a envelhecer bem.

Carol: Durante a pandemia, uma das principais dificuldades enfrentadas pelas pessoas com familiares maiores de 60 anos tem sido manter o distanciamento social e a orientação para ficar em casa. Por um lado, vivemos uma situação atípica, na qual muitas emoções estão envolvidas em todas as partes. No primeiro episódio dessa série, tratamos inclusive dos anseios de mudar a rotina e nos vermos sem respostas concretas sobre o dia que virá. Isso afeta diretamente a liberdade e autonomia de qualquer pessoa em qualquer idade. A questão que surge agora é: o que devemos fazer em situações como essa com os nossos idosos? Para os que convivem com seus familiares de maior idade, como conversar com eles sobre a necessidade de se proteger ficando em casa?

Karina: É muito importante que a família que tenha um idoso dê mais importância ainda a essa situação de distanciamento social, porque a gente sabe que os idosos são grupo de risco, muitos deles têm várias comorbidades associadas como hipertensão, diabetes, insuficiência renal crônica, situações neurológicas e situações oncológicas que fazem com que esse idoso tenha um risco, ao ser contaminado pelo Covid, de ter uma situação mais grave do que as outras pessoas. Então, se você tem um idoso dentro da sua casa, você deve ser o mais criterioso com esse distanciamento social para proteger principalmente esse idoso que convive com a gente dentro de casa. Então, se for preciso sair, sair com máscaras. Ao chegar em casa, deixar o sapato fora de casa ou num local isolado próximo a porta de entrada. Ao chegar em casa já trocar a roupa e se higienizar. Se vier com mercadorias, higienizar essas mercadorias que vão estar sendo usufruídas pela família. Manter, o familiar, as medicações que o idoso faz de uso contínuo. Então mesmo numa situação diferente que a gente tá vivendo hoje de pandemia, é importante que os cuidados que já eram contínuos com o idoso continuem e que a gente não minimize esses cuidados. Então as medicações que são de uso contínuo elas precisam continuar conforme prescrição médica e nos mesmos horários. Oferecer hidratação a esse idoso de duas em duas horas é muito importante. Ficar atento às alterações de comportamento desse idoso, como confusões mentais e, principalmente, incentivar esse idoso que tá com a gente em casa a manter atividades físicas e de estimulação cognitiva para preservar a vida dele. 

Carol: E o que os familiares podem fazer durante a pandemia com os entes idosos que vivem sozinhos mas precisam de seus cuidados?

Karina: Se o idoso mora sozinho ou se a gente tem, por exemplo pais, avós que moram em outra cidade, é importante que a gente mantenha esse vínculo emocional durante essa fase de distanciamento social. Então ligações constantes pra ter notícias e conversar com esse idoso, videochamadas são importantes. A gente garantir que esse idoso tenha como receber compras de supermercados, quitanda ou farmácia é uma forma de ajudá-los nesse momento que a gente não pode visitá-los e não pode ter contato físico. E principalmente: esclarecer ao idoso a importância do distanciamento social, de ficar em casa, de não receber visitas, de ir no culto (se esse idoso é muito religioso), de não frequentar a missa, de ter opções, como por exemplo, de assistir a missa mais pela televisão. E a gente entender que o idoso precisa de informações de forma clara pra que ele também entenda e possa se precaver.

Carol: E caso você seja o idoso que mora sozinho, quais as recomendações?

Karina: A prevalência de idosos que moram sozinhos é grande no nosso país. A primeira coisa pra esses idosos que mora sozinhos é se manter em casa e pedir auxílio pras compras de supermercado, quitanda e farmácia ou pra própria família ou pra amigos ou vizinhos pra que ele não precise sair de casa. Se isso não for possível, se o idoso não tiver alguém pra auxiliá-lo nessas atividades que são fora de casa, é importante que o idoso, ao sair, tome cuidado com o uso de máscaras e que também escolha os horários de menor frequência de pessoas no estabelecimento que ele precise ir. E, ao chegar em casa, esse idoso deve ter muito cuidado com tirar os sapatos, fazer higienização da sua roupa, das suas compras. Ao morar sozinho, é importante que o idoso mantenha as suas medicações – que pode ser através de alarmes no celular – se hidratar, não ir às igrejas e cultos. Se mantenha em casa se possível sempre. 

Carol: E quando o familiar contaminado pela Covid-19 divide o lar com um idoso?

Karina: É importante que a gente tenha os cuidados de se isolar num cômodo, de não dividir toalhas, objetos pessoais como prato, copo, talher. Então ficar isolado num cômodo, quando for circular pela casa, ir ao banheiro ou cozinha, usar máscara e manter o distanciamento desse idoso. E intensificar a limpeza desses lugares que são de uso coletivo pro idoso.

Carol: E o que precisa ser feito ou já está sendo feito pelo poder público no caso dos idosos em situação de pobreza?

Karina: A gente já tem alguns idosos que recebem aposentadoria, mas a gente sabe que, muitas vezes, a aposentadoria não provê todas as necessidades econômicas. A gente tem idosos que conseguem o benefício complementar. Essa situação de distanciamento social, ela só vem acentuar as desigualdades sociais já existentes, tanto para os idosos quanto para as populações vulneráveis. A gente sabe que a população de rua também sofre nesse momento de distanciamento social. É importante que a gente garanta o auxílio emergencial, que haja um rastreio dessas pessoas idosas em situação de pobreza pela secretaria de assistência social, um apoio da comunidade para esses idosos moradores em áreas de pobreza e o acompanhamento da equipe de saúde da família. 

Está sendo discutido um oferecimento de um auxílio emergencial para os cuidadores informais, que são aquelas pessoas que cuidam de idosos, mas não de uma maneira profissional. Isso seria importantíssimo nesse período para que a gente pudesse manter essas pessoas mais tranquilamente dentro casa, sanando as suas necessidades econômicas e isso garantiria uma maior proteção ao idoso e à sua saúde.

Carol: Infelizmente, em tempos de pandemia, outros fatores se fazem ainda mais presentes…

Karina: Infelizmente a gente sabe que nesse tempo de distanciamento social, se manter em casa faz com que aumente alguns casos de violência e isso também acontece com a violência ao idoso. Então, quanto mais políticas públicas a gente tiver de cuidados a longo prazo, e que a comunidade entenda que ela pode e deve olhar esse idoso que mora perto, a gente consegue assistir melhor esse idoso, que tem um nível socioeconômico menor.

Carol: Novas demandas têm surgido em um mundo no qual a população global envelhece rapidamente. Países como o Japão já possuem uma população idosa bastante numerosa. Ao mesmo tempo, a média de filhos por família vem diminuindo. Ou seja, caminhamos para um cenário com maior população de idosos. Pensando nisso, a OMS definiu o período de 2020 a 2030 como a década do envelhecimento saudável, visando criar estratégias e planos de ação para melhorar a vida dos idosos e da comunidade que os cerca. Como devemos nos preparar para esse mundo que envelhece rapidamente?

Karina: É preciso que a gente defenda políticas públicas pra população idosa e que a gente olhe pra todo esse processo de envelhecimento e que a gente garanta o envelhecimento digno no Brasil. Essas políticas públicas precisam garantir, ao longo da vida, o completo bem-estar. Não quer dizer ausência de doença, mas quer dizer que a gente promova a saúde ao invés de acolher só a doença, que a gente controle as doenças crônicas – que são as mais prevalentes na nossa sociedade – e que a gente incentive ações preventivas na área da saúde relacionadas às doenças crônicas, mas relacionadas também às questões de quedas, de dor, que pioram muito o processo de envelhecimento. Além disso, é importante que gestores municipais, estaduais e federais entendam que a gente precisa precisa de políticas de cuidadores de idosos públicos. A gente consegue, com cuidadores públicos, assistir tanto a família que cuida desse idoso dentro de casa, como o idoso que é sozinho – evitando a institucionalização desse idoso – e a gente sabe que cuidadores públicos teriam um gasto menor do que manter esse idoso numa instituição de longa permanência, além de todo o bem-estar emocional e social que é esse idoso permanecer junto com a sua família ou na sua casa. Isso já acontece no Brasil com uma experiência de muito sucesso na cidade de Barueri.

Além disso, a gente precisa investir nesse cuidado a longo prazo em diferentes setores da sociedade, principalmente com equipes domiciliares, e qualificar os profissionais de saúde social para o envelhecimento. A gente precisa também investir em valorização da pessoa idosa em outros setores que não só de saúde social, como nas empresas que oferecem e vendem mercadorias pra esse idoso, de transporte público, os setores de construção civil. Que eles tenham esse olhar e a gente também incentive o respeito à pessoa idosa e ações intergeracionais, que traz benefícios tanto pra pessoa idosa, como para as crianças, adolescentes e adultos que convivem com esses idosos. É importante que a gente valorize a participação dessa pessoa idosa na nossa comunidade.

Carol: No conto da Clarice Lispector, há momentos em que os familiares enxergam dona Anita como uma idosa que necessita de cuidados da família, quase sem decisão sobre si, e há outros em que a própria Dona Anita pensa:

Como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? (…). O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio.

Na velhice, há realmente uma relação de inversão dos filhos assumindo o papel dos pais ou mesmo nessas situações a figura de pai e filho se mantém como antes? Como se sentem as partes envolvidas? Quem tem uma história pra nos contar é a Maria, filha da Dona Joana e que passa por uma situação bastante semelhante.

Maria: Então, no início, eu achei que eu iria só acompanhar a medicação, se ela tava tomando certinho, fazer um teste de glicemia capilar para controlar o diabetes dela, ver se ela tava tomando nos horários certos e tudo mais. E aí eu comecei a fazer esse tipo de acompanhamento junto com ela,e aí eu percebi que, na realidade, ela não precisava só de alguém pra ver se ela tava tomando a medicação certa ou não, e fazer um teste pra ver se o diabetes estava controlado ou não. No decorrer desse tempo eu percebi que ela precisava que muito mais que isso. Ela precisava de alguém do lado dela, de uma companhia pra ela, de um proteção no geral pra ela. Porque eu percebi que aí, aconteceu uma dependência: eu comecei a dar a medicação, caminhar pra tomar banho. Comecei a perceber também que aquela comida gostosa que ela sempre fez pra gente se reunir todo mundo e almoçar no domingo junto com ela, ela já não conseguia mais, já tava se esquecendo do tempero, de como fazia, já deixava queimar, e eu vi que eu como filha tomei as rédeas da situação.

E foi aí que eu percebi uma carência muito grande vinda do idoso, que ele sente aquela necessidade de sair pra passear. Ele gosta de ir no shopping, ele gosta de sair pra tomar um lanche, ele gosta de fazer uma caminhada, de ir numa praça, mas ele fica aguardando a companhia né, porque eles não têm mais segurança de fazer tudo isso sozinho. Eles querem alguém do lado, guiando, orientando e dirigindo eles. E é muito bom essa companhia, é muito prazerosa.

Karina: É muito importante que a gente tenha esse convívio. O que a gente quer é viver com nossos pais e avós, que eles vivam bem até o final da sua vida. Mas é importante que os filhos entendam que idosos não são crianças. E a gente não pode infantilizar esse idoso e esquecer que esse idoso, pra que ele tenha uma saúde adequada,a gente precisa respeitar a sua autonomia de tomar decisões. Decisões simples, como o que ele vai comer, ou que roupa ele vai colocar, mas decisões também de vida, como se ele quer passear, se ele quer ir pra igreja, se ele quer casar novamente.os filhos precisam estar preparados pra isso, e preparados pra assistir ao pai nas dificuldades que essa pessoa idosa tiver, mas não neutralizar as ações. Mas isso é muito bom quando a gente tem uma família harmônica, uma família que tem laços afetivos. E a gente sabe que não é sempre assim. Então por isso que cuidadores formais, públicos, são importantes nessa fase do cuidado.

Carol: No conto da Clarice Lispector, dona Anita relembra a figura do filho Jonga, o único por quem ela mantinha um verdadeiro carinho, mas que veio a falecer. 

Como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos.

Depois desse incidente, dona Anita é evidentemente afetada. A festa já não é mais a mesma quando era Jonga quem puxava os parabéns e sabia o que dizer em quase todas as situações. Algo inevitável para todos nós, mas que às vezes é um tabu, é justamente a morte. Esse assunto, sobre o qual tantos filósofos refletiram a respeito, implica diretamente em nossa autonomia de viver. Mas, em tempos de pandemia, um fator externo pode dar cartada final. Com a falta de respiradores, uma decisão da medicina popularmente conhecida como “a escolha de Sofia” é relembrada. Em virtude do possível colapso hospitalar por causa do novo coronavírus, essa escolha implica agora em decidir se uma pessoa mais jovem ou mais idosa terá prioridade no uso do aparelho. Quem fala sobre isso com a gente é o Professor Marco Túlio Cintra, médico geriatra, atuante na UFMG e presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia em Minas Gerais.

Marco: Uma situação que chamou muito a atenção de muitas pessoas foi o que aconteceu na Itália. A Itália é um país que não tinha tantas unidades de terapia intensiva, e quando aconteceu o momento mais crítico da pandemia lá, do Covid-19, pessoas muito idosas com comorbidades foram preteridas para a assistência dos mais jovens. essa é uma situação que não é cuidado paliativo. Essa é uma situação de manejo de catástrofe. Em manejo de catástrofe, você cuida daquele que tem mais chance de sobreviver. Quando nós falamos de um idoso ir ou não à terapia intensiva, ser ou não ser entubado, seja por Covid-19, seja por qualquer outra doença, nós precisamos saber que diante do estado de saúde desse idoso, e diante da gravidade da doença que ele adquiriu, qual que é o prognóstico de recuperação dessa pessoa para definir isso. Vou dar um exemplo: um paciente com uma demência muito avançada, que já não sai mais de casa sozinho, dentro de casa precisa de auxílio para banho, para trocar de roupa, já não consegue mais andar sem auxílio de terceiros, tem que dar alimentação na boca, ou seja, uma pessoa completamente dependente, com um histórico de várias infecções nos últimos meses, já muito emagrecida e desnutrida. Imagina que essa pessoa que tem uma infecção grave, uma sepse, uma pneumonia grave. Um paciente desses, a chance de sobrevivência é muito baixa, e a chance de ao ser entubado e ir pra ventilação mecânica de, se sobreviver, sobreviver num estado extremamente crítico de saúde, muito debilitado.

Diante dessa situação, muitas vezes o correto, é que se discuta essa situação com a família, os responsáveis, que se coloque os prós e contras, as baixas probabilidades de sobrevivência, e se sobreviver, há uma probabilidade muito grande de um estado muito debilitado, com um cuidado muito difícil, e que diante dessa situação toda e do sofrimento inclusive do paciente e família, que se discuta se vai ser entubado ou não, se vai pra uma terapia intensiva ou não e idealmente mesmo é que essas situações sejam discutidas antes que uma emergência acontecer, isso sim é um cuidado paliativo e uma prerrogativa fundamental do cuidado paliativo é a comunicação, é a discussão da situação que tá se passando com a família e a decisão compartilhada,. E que com a infecção pelo Covid-19 e com outras intercorrências clínicas, se faz necessário esse tipo de discussão com pessoas com pior estado de saúde.

Carol: Outro assunto que surgiu durante essa pandemia e já se mostrou não efetivo é a questão do isolamento vertical, ou seja, a decisão de isolar somente os mais vulneráveis, o que inclui os idosos. Por que isso não funciona?

Marco: Primeiro que a experiência mundial nessa questão já tem mostrado que os países que adotaram um distanciamento ampliado mantendo somente os serviços essenciais, e mantendo todos aqueles que eram possíveis em distanciamento, e fazendo a maior quantidade possível de testes para o SARS-Cov-2, que é o vírus da infecção do Covid, se saíram muito melhor do que os países que não fizeram medidas significativas de distanciamento e que testaram muito pouco a sua população. Exemplos são os surtos graves que tão acontecendo na América do Sul, e incluem países como o Brasil e também a Suécia, que comparada aos países vizinhos do Norte da Europa, se saiu muito pior. No Brasil, o desafio seria imenso de fazer um distanciamento somente vertical, só mantendo aqueles com fatores de risco e idosos isolados. Imagine uma casa com dois cômodos, num aglomerado, e nós temos vários aglomerados, comunidades, pessoas mais carentes, mais pobres nesse país, imagina uma casa com dois cômodos, três cômodos manter uma pessoa idosa, por exemplo, isolada, distanciada dos demais membros da família? Tem uma sala, tem um banheiro e tem quarto. Não tem como, é inviável. Pessoas morando em palafitas na região amazônica, embaixo das palafitas um rio passando, e manter somente as pessoas de maior risco em distanciamento. Era impossível, porque alguém lá dentro teria que sair pra trabalhar. Não há nem espaço nessas casas, para fazer esse tipo de distanciamento. Pra fazer um distanciamento vertical seria necessário ter lugares imensos, país afora, para poder colocar as pessoas que não teriam condição de fazer distanciamento em casa por questões econômicas, de onde eles vivem, a situação delas, e para poder manter elas em distanciamento. O custo é imenso e nós já sabemos pelos desfechos da pandemia pelo Covid em diversos países que isso não deu certo, então a maneira correta de lidar com a questão é fazer um distanciamento ampliado, manter somente os serviços essenciais pra poder diminuir o ritmo de transmissão da doença e com isso conseguir conter a pandemia mais rapidamente. E principalmente, testando a população, para você conseguir detectar os transmissores e mantê-los também em distanciamento.

Carol: No conto de Clarice Lispector, o aniversário de 89 anos da dona Anita termina com os votos de uma nova reunião no próximo ano, mesmo que essa reunião sustentasse, no fundo, uma mera obrigação.

— Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo (…)

Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa (…). Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.

Carol: Nessa pandemia o cuidado com os idosos é extremamente necessário. Além disso, é mais um exercício de empatia, especialmente com aquele que carrega consigo toda uma experiência de vida e que, um dia, já esteve do outro lado cuidando de alguém.

Envelhecer é natural no curso da vida, e é um fenômeno que acontece a cada dia de nossa existência. Mas tomar certos cuidados agora pode projetar um amanhã melhor que o hoje. Afinal, quando tomamos medidas preventivas nessa pandemia, não estamos prevenindo somente a nós mesmos, mas todos aqueles que convivem conosco. Vale lembrar que a discriminação contra pessoas por motivos de idade, chamada etarismo, é uma forma de preconceito! E o abandono de idosos é crime! Denúncias podem ser feitas pelo disque 100 gratuitamente.

Apesar da distância física, espero que a mensagem chegue até você nessa grande rede digital. Estamos juntos, mesmo cada um na sua casa. Em diferentes fases da vida e em um abraço virtual.

Carol: Eu sou a Carol e esse foi o QUARENTENA.

Colaboração: Matheus Steigenberg Populim

Fique por dentro do podcast da UFMG sobre Covid-19: o Avascast, disponível no Spotify e Anchor.FM 

Fontes:

World Health Organization (WHO). Disponível em: https://www.who.int/healthinfo/survey/ageingdefnolder/en/ acesso em 14 maio 2020.

World Health Organization (WHO). Disponível em: https://www.who.int/ageing/en/ acesso em 14 maio 2020.

IBGE. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26103-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumenta-para-76-3-anos-em-2018 acesso em 14 maio 2020.

IBGE. Disponível em: Tábua completa de mortalidade para o Brasil – 2018 acesso em 14 maio 2020.

IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/ acesso em 14 maio 2020.

 

Músicas:

Music provided by  Creative Commons Music Free To Monetize: Here Comes the Bride – Wedding March by Wagner – Stringspace String Quartet FREE WEDDING Music https://youtu.be/INE0NEPeGL0 https://goo.gl/7XDEmg

Funeral March by Chopin – Youtube Audio Library
Secret-Pocketbook  by Holyoke – Blue Dot Sessions
Union Hall Melody by Union Hall – Blue Dot Sessions
Valantis by Cauldron – Blue Dot Sessions
Gambrel by Architect – Blue Dot Sessions
In other times by Darby – Blue Dot Sessions

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