#198 – Escolas bilíngues no contexto brasileiro
jun 26, 2025

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A demanda por escolas bilíngues cresceu e se diversificou no Brasil nos últimos anos. Há diferentes modelos, com diferentes faixas de preço. A propaganda dessas escolas reforça a aprendizagem contextualizada de um novo idioma como um diferencial.
Neste episódio, Mayra Trinca e Marco Centurion exploram o tema, tentando desvendar se o investimento vale a pela ou não. Para isso, participam do programa Ingrid Finger, pesquisadora de bilinguismo e cognição, Miqueli Michetti, socióloga, e Yasmin Faiad, que foi aluna de uma escola bilíngue. 

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ROTEIRO

MAYRA: Se você procurar por “escolas bilíngues no Brasil” no google, vai ver diversas manchetes como:

LÍVIA: “Procura por modelo de ensino bilíngue ultrapassa 60% no Brasil”; Escolas bilíngues e internacionais no Brasil cobram mensalidades de até R$ 12 mil; saiba como funcionam”; ou “Escolas bilíngues disparam no Brasil”. 

MARCO: Dá pra perceber que o modelo vem crescendo e ganhando espaço nas famílias com maior poder aquisitivo. Se você é responsável por alguma criança e tem uma folguinha financeira, é bem possível que já tenha se perguntado se vale a pena investir nesses espaços e nesse tipo de ensino. 

MAYRA: Se você tá numa situação dessa, ou se interessa pelo assunto, esse episódio é sobre isso: escolas bilíngues. Vamos contar o que é necessário pra uma escola ser chamada de bilíngue, quais as vantagens (e desvantagens) e filosofamos um pouco sobre as influências sociais e culturais no meio disso tudo. Eu sou a Mayra Trinca. 

MARCO: E eu, o Marco Centurion.  E, apesar de tratarmos do tema como escolas bilíngues, o foco principal é nas escolas que utilizam o idioma inglês como a língua estrangeira. Há poucas escolas que adotam outras línguas no Brasil; inclusive línguas originárias. 

YASMIN: Meu nome é Yasmin, eu tenho 19 anos e no meu ensino fundamental eu passei por uma escola bilíngue. Foram 5 anos nessa escola e depois disso, no meu ensino médio eu entrei para uma escola regular, sem ser bilíngue. E agora eu comecei a fazer faculdade. 

MAYRA: Essa que você ouviu foi a Yasmin. Ela foi aluna do Marco alguns anos atrás. Eu e o Marco nos conhecemos no curso de especialização em jornalismo científico aqui do Labjor. Eu sou bióloga e o Marco, físico. 

MARCO: Coincidentemente, nós dois já trabalhamos como professores de ciência em escolas bilíngues, onde eu dei aula pra Yasmin.

MAYRA: Hoje, nem eu nem o Marco estamos mais nesse meio. Mas desde que eu saí da escola, eu fiquei com vontade de investigar sobre o ensino bilíngue porque algumas coisas no modelo da escola que eu trabalhei me incomodavam. Aí chamei o Marco pra colaborar comigo nessa pauta. 

MARCO: Desde as nossas primeiras conversas sobre o tema deste episódio, notamos mais uma coincidência: os nossos incômodos eram bastantes similares. Tocavam desde aspectos cognitivos, culturais, sociais e, claro, pedagógicos.

MAYRA: E a partir disso, o Marco pensou que a gente podia falar com a Yasmin pra saber um pouco mais da perspectiva dela como aluna. 

YASMIN: O meu processo no ensino fundamental, numa escola bilíngue, foi muito interessante para mim e eu sinto os efeitos dele até hoje. Então, no meu trabalho, nos meus estudos, eu percebo como foi uma coisa muito importante e que eu fui muito sortuda de ter tido essa oportunidade de ter esse contato com o inglês desde pequena. 

MARCO: Mas antes da gente continuar com a experiência da Yasmin, acho importante a gente definir aqui o que é uma escola bilíngue. Faremos isso com a ajuda da Ingrid Finger.

INGRID:  No Brasil a gente tem escolas bilingües, com currículo bilingüe. 

MARCO: Que são as escolas onde as crianças têm aulas de matérias específicas, como ciências, matemática ou geografia em inglês. Com isso, a língua é explorada em mais contextos e fica mais integrada no currículo. 

INGRID: Então, a escola bilíngue é a escola que possui um currículo integrado no qual os conteúdos e as habilidades são desenvolvidas nas duas línguas do currículo. Mas a gente também tem um número grande de escolas que têm o que a gente tem chamado de programa bilingüe.

MAYRA: Que é uma escola regular que oferece carga horária estendida na língua adicional. Essas horas variam muito, tem escola que oferece 5 horas a mais na semana, tem escola que oferece 10, e por aí vai. 

INGRID: O que é o formato mais comum no Brasil? Um número maior do que o previsto na legislação de carga horária na língua adicional. Então, a escola às vezes tem 5 horas na língua adicional, mas o que o professor de inglês faz, ele faz separado do que é feito no resto da escola, não existe essa integração. 

MARCO: Faltou a gente dizer quem é a Ingrid Finger.

INGRID: Sou professora titular do Departamento de Línguas Modernas com vínculo permanente ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Eu faço pesquisa na área de bilinguismo e cognição, educação bilíngue, biliteracia, processamento bilíngue. Já há um bocado de tempo, desde 2006, eu coordeno um laboratório de pesquisa que se chama Labico, Laboratório de Bilinguismo e Cognição na UFRGS.

MAYRA: A gente convidou a Ingrid pra participar desse episódio pra ajudar a gente a entender a ciência envolvida na aprendizagem bilíngue. E também pra contar como saber falar duas ou mais línguas afeta diversas áreas na nossa vida. 

MARCO: Beleza, todas apresentadas, vamos continuar! 

YASMIN: Antes de entrar para essa escola bilíngue, eu estudava numa escola normal, assim. Então, eu percebi como as matérias também eram focadas no idioma, focadas no inglês. A gente tinha ELA, que eram os estudos em inglês, tudo em inglês. A gente tinha matemática em inglês. 

MAYRA: De início, a gente pode achar que estudar outras matérias em inglês é só uma forma de aplicar a língua em mais contextos como uma forma de ganhar vocabulário, de conseguir se expressar sobre diversos temas em outra língua, que não a materna. Mas a Ingrid explicou que é mais do que isso:

INGRID: Aqui a gente está pensando não só na proficiência de habilidades comunicativas de dizer que foi ao cinema no final de semana e qual é o sabor favorito de sorvete, a gente tá falando no desenvolvimento de habilidades de raciocínio na língua, né? Então a gente tá falando de a criança ser capaz de relatar eventos históricos, porque ela aprendeu história e ela é capaz de fazer um raciocínio histórico ou, né, conteúdo de biologia ou raciocínio matemático, que é um bom exemplo nas duas línguas. Uma coisa é a criança saber contar até 100, né? E dizer quantos anos tem. Outra coisa, ela é ser capaz de resolver um problema matemático e elaborar uma equação matemática na língua adicional. Essas habilidades são habilidades acadêmicas, que só podem ser desenvolvidas através de uma integração curricular.

MARCO: É justamente essa capacidade de raciocinar academicamente e realizar conexões com o mundo cotidiano numa língua adicional que diferencia um currículo bilíngue do simples ganho de vocabulário em outro idioma. Como a Ingrid reforça:

INGRID: Existem muitos modos de formar sujeitos bilíngues. Mas se a gente tá pensando num indivíduo bilíngue que é capaz de articular conteúdos acadêmicos na língua adicional. Isso só se dá através de um currículo bilíngue.

MAYRA: E se o currículo bilíngue é essencial para desenvolver essas habilidades acadêmicas em uma língua diferente, isso também levanta uma questão fundamental e que é o grande gargalo do ensino bilíngue segundo a Ingrid. 

MARCO: A gente não tem formação de professores para essa tarefa. Pois não basta dominar o idioma, é preciso entender como a língua e o conteúdo se integram no processo de aprendizagem. E isso tem a ver com a forma como nosso cérebro armazena o  conteúdo disciplinar junto com a nova língua.

INGRID: Porque tu não aprendeu assim. Quando a gente aprende alguma coisa a gente aprende o conteúdo, mas armazena também a língua na qual a gente aprendeu. A gente armazena toda a experiência de aprendizagem, né? A gente armazena a emoção que vivenciou quando a gente viveu aquela aprendizagem, né? Então isso tudo tá armazenado junto e se tu aprendeu o conteúdo numa língua vai ser muito mais fácil falar naquela língua sobre esse conteúdo.

MAYRA: Essa era uma das coisas que eu tinha mais dificuldade quando dava aulas em inglês. Eu sei o conteúdo e eu sei falar inglês, mas nunca soava natural. Sempre parecia que tinha alguma coisa fora do lugar. E pra algumas matérias, isso pode ser ainda mais complicado. 

MARCO: O que a Ingrid comentou se encaixa perfeitamente com a matemática, porque algumas operações, como por exemplo na divisão, a posição dos números na conta fica invertida em comparação com o que a gente faz no Brasil. 

YASMIN: Mas aí tem a parte negativa, que foi o susto mesmo, sabe? O ensino que eu tive no fundamental parece que foi muito mais focado nas escolas do exterior. Então, os materiais que a gente tinha não eram materiais brasileiros, eram materiais de fora. E eu percebi que isso, nossa, me afetou muito. 

MAYRA: Yasmin aqui de novo. Ela tava contando pra gente justamente como esse jeito diferente de fazer as coisas acabou dificultando um pouco a vida dela quando ela chegou no ensino médio em uma escola tradicional. 

YASMIN: Mas o que acontece, nos estudos, foi muito difícil eu me acostumar, porque apareciam coisas pra mim que eu não tinha visto. Eu vi, de outra forma, do jeito que eles veem lá no Canadá. Então, assim, eu diria que, de certa forma, foi muito difícil me adaptar novamente, né? E também por ser inglês, os ensinos que eu tive em Science, o ELA, eu sinto que eu não consegui me adaptar ao português deles depois, que eu fui vendo ao longo dos três anos de ensino médio, né? Que eram coisas que eu talvez precisasse ter focado um pouco mais, porque as provas do vestibular não… não são canadenses, né?

MARCO: Aí a gente chega num outro ponto importante, e que também incomodava a gente em sala de aula. Nessa escola, metade das matérias eram dadas em português e a outra metade, em inglês. 

MAYRA: Por exemplo, na escola que a Yasmin estudou, ela tinha história e geografia em português, mas ciências e matemática eram dadas em inglês. E aí, quando chegou no ensino médio, os termos e as formas de pensar eram diferentes. A gente perguntou pra Ingrid sobre isso:

INGRID: Acho muito complicado a gente focar em determinadas áreas numa língua e determinadas áreas na outra, a gente acaba cerceando o desenvolvimento da criança numa determinada área na outra língua. Então o ideal é no mínimo intercalar. 

MAYRA: Por exemplo, se no quinto ano matemática foi em inglês, no sexto matemática é em português. 

MARCO: Isso é ainda mais importante se a gente considerar que, infelizmente, ainda temos no Brasil um modelo de ensino que é basicamente uma preparação para os vestibulares. 

YASMIN: E eu percebi o quanto faltou um pouco de algumas bases, assim, de ensino fundamental pro foco que é as provas do final do terceiro ano, sabe? Porque, querendo ou não, esse é o foco que a gente tem. Tudo leva pra prestar vestibular no final. Então, foi uma coisa que eu achei muito difícil. 

MARCO: Sabendo de tudo isso, a gente fez uma pergunta difícil pra Yasmin: qual foi seu veredito? Valeu a pena ter passado pela escola bilíngue? 

YASMIN: Eu diria que foi muito interessante, sabe? Por mais que eu tenha falado muito contra, eu tenho muito a favor também. 

MAYRA: A aprendizagem bilíngue realmente pode oferecer uma série de benefícios, tanto na aquisição de conhecimentos formais, na escola, quanto em outras habilidades cognitivas. A gente falou bastante com a Ingrid sobre isso. 

MARCO: Uma das coisas que ela contou foi sobre as descobertas dos primeiros estudos sobre educação bilíngue, que foram feitos no Canadá, no começo dos anos 2000. 

INGRID: E eles viram que linguisticamente falando as crianças bilíngues tinham um desenvolvimento metalinguístico um pouquinho anterior, né? Então a metalinguagem é a capacidade de pensar sobre a língua, principalmente em relação à consciência fonológica. Eles viram que as crianças bilíngues se davam conta das diferenças entre as línguas e de pronúncia, por exemplo.

INGRID: Trazendo para o nosso contexto é como se as crianças dissessem: “Ah tá, então no Brasil a gente sempre tem uma letra lá no final da palavra. Então a gente vai dizer “dogui”, não dog, “dogui” não existe em inglês, né? 

MAYRA: Ok, como uma pessoa que gosta de estudar sobre línguas, esse me parece um conhecimento interessante, mas qual a vantagem dele pras crianças?

INGRID: Fornece uma certa vantagem em termos de desenvolvimento linguístico no momento da alfabetização, por exemplo, né? Quando a criança já chega na escola com as línguas oralmente desenvolvidas, no momento de se alfabetizar, o que se viu é que as crianças usavam esse conhecimento de comparação entre as línguas e acabavam se alfabetizando mais rapidamente do que as crianças monolíngues.
E o que se viu é que as crianças bilíngues desenvolviam capacidades cognitivas relacionadas com o controle inibitório e flexibilidade cognitiva um pouco antes.

MARCO: Essa flexibilidade citada pela Ingrid tem a ver com a forma como o nosso cérebro opera no dia a dia. A transição entre duas línguas é mais fluida do que a gente pensa. 

INGRID: A gente não desliga uma língua para falar outra, não é uma chave de luz que a gente liga e desliga, a gente sempre tem todas as nossas línguas, todo o nosso repertório ativo o tempo inteiro interferindo um no outro. O que que a gente faz? A gente controla qual que eu vou usar em qual contexto dependendo do meu interlocutor, então se eu posso usar as duas e misturar eu faço code switching, se eu só posso usar uma porque o meu interlocutor não entende a outra, eu vou me controlar e falar a língua que o meu interlocutor fala.

MAYRA: Todo esse processo de decisão funciona como uma fisioterapia pro cérebro, que tem que interpretar o contexto pra saber qual língua ele vai usar, se pode misturar ou não.

MARCO: E esse exercício mental ajuda a manter o cérebro saudável ao longo da vida. Cria um repertório de memórias – que a Ingrid chamou de reserva cognitiva – que desacelera algumas perdas de função que podem acontecer com o envelhecimento. 

MAYRA: Só que, assim como exercícios físicos, existem fases da vida que tornam essa atividade um pouco mais fácil ou um pouco mais difícil.

MARCO: E considerando esse aspecto, quando perguntamos a Ingrid sobre qual seria o melhor momento da vida para começar o contato com outro idioma, ela resume da seguinte forma.

INGRID: Então, sobre a melhor idade. A melhor idade é ontem. Mas hoje é melhor do que amanhã. E amanhã é melhor do que na semana que vem e do que no ano que vem, né? Então, assim, quanto antes melhor, tá? Isso é certo. 

MAYRA: Todo mundo, a qualquer momento da vida, pode aprender coisas novas. Eu e o Marco, por exemplo, começamos a aprender línguas novas depois de adultos. Só que não dá pra negar que o aprendizado é mais fácil na infância e na adolescência. 

INGRID: Então, o nosso cérebro, tem essa capacidade fantástica que é a plasticidade neural, que é a capacidade de se modificar pra se adaptar às novas experiências.

MARCO: A plasticidade neural tem a ver com a formação de novas conexões entre os neurônios. Funciona mais ou menos como os trajetos que a gente faz no trânsito, pra chegar de um lugar ao outro. 

MAYRA: Imagina que você está indo num lugar novo pela primeira vez. Existem vários caminhos possíveis pra chegar lá, mas você provavelmente vai colocar o endereço no GPS e vai seguir o caminho que ele te indicar. 

MARCO: Se você começar a fazer essa rota várias vezes, vai decorar o caminho e vai seguir por ele sem GPS. Ainda há outras opções, mas você se fixou naquela que aprendeu. 

MAYRA: Com os nossos neurônios acontece a mesma coisa: na infância e na adolescência, conhecemos poucos caminhos, então estamos mais abertos a testar e descobrir novas possibilidades. Conforme vamos ganhando referências, a gente vai decorando um trajeto, que se torna mais automático e a gente para de explorar novos caminhos. Pode não parar, mas reduz muito.

INGRID: A gente possui a capacidade de criar novas conexões neurais durante toda a vida, mas é verdade que essa capacidade de plasticidade é muito maior nas crianças, até o final da adolescência. Esse é um período de aprendizagem ótimo para absolutamente qualquer coisa, e é por isso que é quando a criança deve estar na escola, né? 

MARCO: Ou seja, quanto mais cedo a gente começar a aprender uma língua, mais fácil é se entender com a pronúncia ou com a estrutura das frases. Isso porque estamos menos viciados com o funcionamento da língua materna. Olha o exemplo da Yasmin:

YASMIN: Eu tive que conversar em inglês todos os dias por 5 anos, então era todos os dias, eu tava praticando a pronúncia, o modo de falar.

Então eu acho que isso é  bom também, porque mesmo depois de sair da escola, tipo cinco anos depois, ainda continua aqui a minha pronúncia, sabe?

MAYRA: Talvez, se ela tivesse começado esse aprendizado mais tarde, ela pudesse ter mais dificuldade em ter uma pronúncia legal e manter essa habilidade depois de anos. 

MARCO: Mas a Mayra falou uma palavra importante aqui: TALVEZ.

MAYRA: A gente perguntou pra Ingrid o seguinte: 

MARCO: Se a gente comparar uma pessoa que aprendeu uma língua estrangeira numa escola bilíngue, com uma que aprendeu num curso de inglês, existe uma diferença significativa na relação dessas pessoas com a língua?

INGRID: Ninguém sabe. Por quê? Porque o maior desafio com as pesquisas sobre bilinguismo é que o bilinguismo é uma experiência única, individual, e tu não vai encontrar dois bilíngues que sejam exatamente iguais. 

Então, se tu tiveres 500 pessoas numa sala, tu vai ter 500 experiências de línguas diversas. Porque a forma que aprendeu, a forma de contato, o quanto tu leu, o quanto tu assiste série, o conhecimento de vocabulário, o quanto tu já viajou, o quanto de música se ouve em cada língua.

MAYRA: Tem um trechinho do relato da Yasmin que ilustra isso muito bem, escuta só:

YASMIN: Então, os meus pais, eles sempre falaram inglês. Minha mãe estudou fora do país e o meu pai, desde jovem, assim, muito parecido comigo também, ele ia em busca de aprender a língua, seja por aplicativos como Duolingo. Ele ia caçando, aí ele foi aprendendo também. Mas a minha mãe, ela sempre foi fluente. Então, sempre, ela nunca me deu aula, mas às vezes a gente, assistia os filmes em inglês na TV, sem legenda. Então, meio que andando, eu ia escutando as coisas, pegava algumas palavras, mas o meu primeiro contato mesmo foi na escola.

MARCO: E é justamente essa diversidade de experiências que nos levou a um outro aspecto fundamental da nossa discussão aqui, que é como o ensino bilíngue se relaciona com as estruturas sociais. Porque se cada vivência linguística é única, ela também reflete, e por vezes reforça, as desigualdades presentes em nossa sociedade.

MAYRA: Pensando nisso e para nos ajudar a entender essas relações tão complexas entre língua, poder e acesso,a gente apelou pra sociologia:.

MIQUELI: Olá, então, meu nome é Miqueli Michetti, é quase uma pegadinha, né, mas sim, meu nome é Miqueli Michetti e eu sou socióloga de formação. Graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado e eu hoje, atualmente, sou professora de sociologia da Universidade Federal da Paraíba, aqui em cima, em João Pessoa (2:40)

MIQUELI: E eu tenho trabalhado, depois de muitos anos na sociologia da cultura, eu tenho trabalhado nos últimos anos com sociologia das elites e foi isso, também, que me levou a estudar essa dimensão da reprodução das posições de elite, né, nas nossas sociedades, nas nossas cidades, porque a escolarização, a educação, ela é, reconhecidamente, um aspecto muito central na reprodução das posições de elite, né, no mundo. 

MAYRA: Olha só como saber falar inglês pode representar uma posição de status social: 

YASMIN: Então, as pessoas ficam… Nem sei o nome para a reação, assim, mas é tipo… Cara, que legal! Você sabe falar inglês fluente.

MAYRA: E aqui a gente precisa fazer um breve parênteses. .

MARCO: Não sei se você reparou,mas no começo da nossa conversa, quando a Ingrid explicava como saber mais de uma língua traz diversos benefícios cognitivos, ela usa o termo língua adicional. 

MAYRA: Isso porque, aprender qualquer língua já oferece essa vantagem. 

MARCO: Mas a Yasmin estudou numa escola bilíngue de inglês, como são a maioria das escolas desse tipo no Brasil.

INGRID: Tem uma questão mercadológica que muitas escolas estão investindo, porque parece que falar inglês é mais importante do que falar em português. 

MARCO: Mas quais seriam as razões? É a ideia de uma língua global? Ela abre portas no mercado de trabalho? É chique saber inglês? Em acordo com o que a Ingrid disse, a Miqueli compartilha conosco que existem razões bem específicas para que o inglês surja como idioma predileto para a produção da ideia de uma língua global.

MIQUELI: E se a gente tinha, por um lado, um projeto filosófico de integração, da busca por essa língua universal, a gente vai ter, na realidade histórica, aquela que se concretiza e que a gente não tem controle, que quem vai tomar o lugar dessa língua mundial vai ser o inglês. Enfim, uma série de questões de poder, especialmente dos países norte-atlânticos, em especial os Estados Unidos, mas não só. Mas a verdade é que o inglês se transformou na língua mundial. 

MAYRA: Beleza, o inglês é o principal idioma falado no mundo, principalmente quando pessoas de origens diferentes se encontram e precisam se comunicar. Parece óbvia a importância de saber inglês. Mas tem mais nessa história:

MIQUELI: O que nós temos em 2025 é o fato de que o inglês tenha se tornado uma língua global, mas que isso ocorreu dentro, vou falar um termão meio chave assim, mas dentro do capitalismo. Significa que as pessoas, as classes, as famílias concorrem entre si por bons postos de trabalho, por bons lugares de reconhecimento, tanto simbólico quanto econômico, ou seja, no mercado de trabalho e escolar, que é concorrencial. Isso vai fazer com que o inglês seja, vamos dizer assim, mas uma das buscas por uma escolarização que vai ser tida como atualizada, de excelência, aquela educação desejável para todo mundo que pode pagar por isso. Então a gente vê surgir um mercado recente de escolarização em inglês. 

MAYRA: Com este mercado em ascensão e não se contentando somente com o modelo tradicional, o inglês passou a ser um demarcador relevante para as elites, e é aí que entram as escolas com propostas de ensino bilíngues

MIQUELI: Elas vão se reformar ao longo dos últimos anos para oferecer essa nova camada, quase que obrigatória hoje, ou cada vez mais vista como uma necessidade, né, de uma boa educação, que é o ensino bilingüe, que é o domínio, e o domínio que não é qualquer domínio, não serve mais o da escola de inglês, boa e velha, desse domínio vivencial, que marcaria uma boa escolarização para as classes que podem pagar por ela.

MARCO: A Miqueli explicou que esse não é um movimento novo. Que parte dessa história tem a ver com uma movimentação de diplomatas e pessoas de alto escalão que precisavam de escolas com currículos internacionais, para que seus filhos e filhas pudessem dar continuidade na educação formal, mesmo mudando de países de tempos em tempos. 

MAYRA: As escolas bilíngues sempre tiveram lugar também em regiões ou cidades de fronteiras, que recebem muitos imigrantes e precisam adaptar o currículo para atender os jovens estudantes.

MIQUELI: Com a globalização, e essa é a outra parte da resposta, você vai ter mais gente se movendo. As economias globalizadas dos anos 80, 90, mas sobretudo 90, 2000, vai fazer com que a gente tenha muito mais trabalhadores de alto escalão.

MARCO: Que não são exatamente o topo, a elite, mas são classes médias altas. 

MIQUELI: Elas vivem de capital cultural institucionalizado. O que é isso? Elas vivem de bons diplomas. Elas não têm capital, vamos dizer, para os seus filhos não trabalharem, mas elas precisam garantir que seus filhos tenham bons diplomas, boa formação, para ter bons empregos, para ser tão bem posicionado quanto a família de origem, quanto seus pais, ou melhor. 

Então, as classes médias altas, elas investem muito em educação dos seus filhos, porque é uma estratégia de reprodução de classe, então, eu vivo do que? Eu tenho capital econômico de monte, para dar para os meus filhos, para eles herdarem? Não, mas eu vou herdar muito capital cultural, para os melhores concursos, para os melhores postos.

YASMIN: O perfil das pessoas que estudavam lá era o perfil muito mais elitista.

MARCO: E aí, quando mais gente começa a ter acesso à universidade, o diploma universitário vai perdendo peso em ser um diferencial para o acesso a esses postos de trabalho.

MAYRA: Então a sociedade precisa definir qual será o novo trunfo, o novo diferencial que será a marca da qualidade de ensino que justifica salários maiores. E isso nunca vai ser uma regra: muda de lugar pra lugar e de geração pra geração.

MARCO: Mas que comumente, tem a ver com o acesso a uma outra língua. 

MIQUELI: E cada sociedade vai definir nas suas disputas, isso que é interessante, o que que conta como capital, o que que conta como trunfo. Se a gente volta, por exemplo, na pré-geração dos meus pais, o inglês não dizia muita coisa, o francês era a língua dos diplomatas, dos doutores, dos bachareis, se a gente volta mais um pouco no século, é o latim. Ou seja, tem sempre algo envolvido no domínio de línguas que vai marcar posições sociais dominantes, posições sociais reconhecidas, de prestígio, de elite.

MARCO: E dentro deste contexto, o bilinguismo não é neutro pois carrega consigo hierarquias históricas, fazendo desta habilidade uma espécie de passaporte social.

MAYRA: Mesmo havendo outros idiomas reconhecidos oficialmente, o inglês segue tendo destaque no mercado de ensino bilíngue. Para compreender melhor, a Miqueli, traz para a gente o conceito de línguas de prestígio.

MIQUELI: Mas algumas línguas, elas vão ser mais prestigiadas do que outras e não é qualquer bilinguismo que vai ser o bom bilinguismo. 

Por exemplo, na região amazônica a gente tem escolas bilíngues, bilíngue português e idioma indígena. Ninguém nunca falou até então, já tinha, já existia, já desde a Constituição de 88 pelo menos, essa ideia de um bilinguismo indígena no Brasil, e disso, né, tá previsto nas nossas instituições. E não, isso não era, não era assunto, não virava artigo, não virava outdoor, não virava nada. 

MARCO: Então é como se o inglês fosse a língua de prestígio do momento atual, enquanto outras não. Escuta outro exemplo que a Ingrid deu:

INGRID: Eu já vi gente dizendo, as crianças têm vantagem cognitiva quando elas aprendem inglês, mas quando elas aprendem língua de sinais, não. Como assim? Elas vão ter, inclusive, mais vantagens cognitivas, porque línguas de sinais são de uma outra modalidade, a modalidade visoespacial, elas vão aprender ainda mais, vão desenvolver ainda mais cognitivamente. 

MAYRA: Mas, mesmo sendo línguas oficiais do Brasil, você não vê propagandas por aí de escolas bilíngues indígenas ou de LIBRAS. 

MIQUELI: Ou seja, não é só porque você fala duas línguas que você é bilíngue, nesse sentido social. Então, o bilinguismo de prestígio é caracterizado por isso, pelo fato de que não são todos os aprendizados linguísticos, libras, indígenas, sociedades de origem de imigrantes, etc., que socialmente vão ter o mesmo valor simbólico, portanto, transformar isso num capital, num trunfo.

MAYRA: Não se trata apenas de compreender um idioma diferente, mas também de uma acumulação de símbolos sociais que contam uma história, como um status, buscar um lugar no mundo. Como a que a Miqueli vai compartilhar em seguida para ilustrar pra gente:

MIQUELI: Isso a gente vai chamar de capital cultural objetificado. Eu tenho um piano na minha casa. Ter piano em casa, nossa, que legal. Já é o objetificado. Mas olha que legal, eu sei tocar piano. Porque minha avó já tocava, esse piano era da minha avó. Ela trouxe da época que meu avô fazia o doutorado na Alemanha, ela era bailarina, também tocava, eles trouxeram de navio. Ou então, eu comprei um piano de cauda Yamaha por 45 mil reais. Qual piano vale mais?

A gente vê que tem vários jeitos de ter um piano. Alguns deles mais legítimos e outros menos legítimos. Um, que você consegue ainda ver o dinheiro, e o outro que parece que já virou natureza, que já está na família, que já virou afeto, que já virou outras coisas. A cultura vale tanto mais quanto menos a gente consegue ver a mediação crua com o dinheiro, também tem um pouco isso.

MAYRA: “A cultura vale mais quanto menos a gente consegue ver a mediação crua com o dinheiro”. 

MARCO: Isso significa que quanto mais permeado nas atividades do dia a dia, quanto menos tiver cara de algo adquirido ou aprendido formalmente, mais valor social tem aquela coisa.

MIQUELI: A língua, a mesma coisa. Porque a gente já falou do capital cultural objetificado, do institucionalizado, os diplomas, os títulos, e a gente tem aquele que é o mais valioso, porque ninguém tira, que é o chamado capital cultural incorporado. Que é aquele das boas maneiras, que é aquele de coisas que você aprendeu quase que sem ninguém te ensinar, e isso que é o mais louco, por isso que a sociologia é tão interessante, porque ela vai perceber como um processo de aprendizado, como um processo de herança, algo que parece natureza. 

MAYRA: São grupos sociais que tentam não demonstrar que a aquisição de uma língua tem uma finalidade de trabalho, mas sim como algo intrínseco, natural na vida dessas pessoas. Aprender o inglês “naturalmente”, misturado com outros conteúdos, passa um pouco dessa ideia. 

MARCO: E essa busca pelo bilinguismo, nas fases de ensino básico, pode virar uma pressão por aprender um idioma que possui destaque em relação a outras alternativas por razões de mercado. O reflexo disso está na forma como se aprende, que pode ser saudável ou traumatizante.

INGRID: Por exemplo, os pais acreditam que é importante e a criança não tá numa escola bilingüe e aí eles forçam a criança a aprender inglês e a criança odeia isso vai gerar problemas muito maiores do que as vantagens que a criança vai ter de ter acesso, né? Então, assim sempre tem que ser uma experiência positiva pra criança, tá? 

MAYRA: Então a gente encerra aqui com um ponto extremamente importante da Ingrid. Independente de como será a escolha por ensinar um idioma novo às crianças, o importante é que isso seja feito de forma agradável e respeitando os limites e o tempo de cada criança. 

MARCO: Esse episódio foi produzido e roteirizado por mim, Marco Centurion 

MAYRA: E por mim, Mayra Trinca. A revisão do roteiro é da Simone Pallone, coordenadora do Oxigênio. 

MARCO: Os trabalhos técnicos são de Carolaine Cabral e nossos. E a trilha sonora é do Blue Dot Sessions e da Biblioteca de Áudio do Youtube. 

MAYRA: A nova vinheta do Oxigênio, que você ouviu pela primeira vez nesse episódio, é de Elias Mendez. 

O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. Você encontra a gente nas redes sociais como @oxigeniopodcast.  

MARCO: Obrigada por escutar e até a próxima!

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