A disputa pela governança da Internet no Brasil
nov 14, 2025

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A governança da internet, da maneira como é feita hoje, envolve diversos setores e promove um modelo focado na distribuição e acesso por todo o país. Mas mudanças e propostas recentes podem mudar esse cenário, concentrando a gestão da internet em poucas grandes empresas.

Neste episódio, apresentado por Damny Laya e Thais Lassali, produzido também por Mayra Trinca, te contamos o que está por trás da queda da Norma 4 da Anatel, que separa o que é telecomunicações do serviço de internet no Brasil. Para isso, falamos com representantes de associações de provedores de internet, membros do Comitê Gestor da Internet no Brasil e da Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel. 

ROTEIRO

[música de introdução] – Chicken Steak

THAIS: Hoje a gente vai falar sobre internet. Mas não sobre o vício que as redes sociais causam ou sobre como conteúdos cada vez mais extremistas e violentos têm vindo à tona.

DAMNY: O que não significa que o assunto seja menos importante… ou menos espinhoso.

THAIS: A gente vai falar sobre como o acesso de algumas pessoas a internet pode ser abalado com algumas mudanças que estão por vir. Mas, talvez até mais importante, o episódio de hoje é sobre quem toma as decisões sobre o funcionamento da internet no Brasil.

DAMNY: Eu sou Damny Laya, bolsista Mídia Ciencia do Nucleo de desenvolvimento da Criatividade que abriga o Labjor.

THAIS: E eu sou Thalis Lassali, bolsista Mídia Ciência do Geict, o grupo de estudos interdisciplinares em ciência e tecnologia do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp.

[VINHETA]

DAMNY: Pra começar essa conversa, é importante ter em mente algumas questões técnicas. A gente vai tentar ser breve e didático aqui, mas presta atenção porque vai ser importante.

THAIS: A internet funciona dependendo basicamente de três coisas: a camada de infraestrutura básica, as conexões entre diferentes pontos e os conteúdos transmitidos por essas conexões.

[música] – Slider

DAMNY: A infraestrutura são os cabos e os sistemas de armazenamento de informação, como os cabos submarinos e os data centers, por exemplo. A conexão entre os pontos é a parte lógica do funcionamento, que envolve a identificação na rede e as maneiras de ligar os IPs, os endereços de rede, entre si.

THAIS: E a parte de conteúdo é a cobertura de tudo isso, a parte que a gente realmente vê e interage. E, vamos ser sinceros aqui, a parte que mais recebe nossa atenção. Eu não sei você, mas eu mal penso em todo o quebra-cabeça necessário que permite que eu consiga me conectar a rede pra ouvir um episódio de podcast, por exemplo.

DAMNY: Só que as camadas de baixo são essenciais pra esse funcionamento. A gente não conseguiria fazer esse podcast chegar até você se não fosse a conexão que existe pra distribuir o episódio nos agregadores e fazer ele chegar no seu fone.

THAIS: E não adianta a gente tentar distribuir esse episódio se não tem cabo que leve as informações de um lugar para o outro. Nas grandes cidades, quem costuma fazer o trabalho de instalação desses cabos são as empresas de telecomunicação.

DAMNY: Essas empresas são aquelas que nasceram com a telefonia, ganharam corpo com a rede celular e aí foram se adaptando e incluindo no seu serviço a oferta de internet.

[encerra música]

BASILIO: E existe uma diferença muito importante, que é assim, nas cidades mais grandes, cidades de mais de 500 mil habitantes, quase todas elas são dominadas pelas grandes operadoras, 80% dos acessos são feitos pela Vivo, pela Claro, pela TIM, por empresas desse porte.

THAIS: Esse é o Basílio Perez. Ele é vice-presidente da Abrint, a Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações e presidente da Federação de Associações e Câmaras de Provedores de Internet da América Latina e do Caribe.

BASILIO: Mas, quando você vai descendo em cidades menores, em cidades abaixo, já na faixa de 200 mil habitantes, já está meio a meio, metade pequenos provedores, metade grandes operadores. Quando você vai descendo em cidades menores, chegando em cidades de 30 mil habitantes, 90% do acesso é da pequena operadora.

DAMNY: O que o Basílio tá dizendo é que a internet do Brasil é organizada de diferentes formas dependendo da região. Nas cidades maiores – em geral mais ricas e com mais infraestrutura – quem predomina são as grandes operadoras.

RAFAEL: E muitas vezes elas não têm interesse de levar esse cabo até a cidade do interior. Mas tem um cara que quer prover internet lá. Então ele fala, ei, manda um cabo aqui, eu pago, que depois eu faço o cabeamento aqui da região. Chega o cabo da telecom, ele compra essa conexão, ele compra uns IPs. E monta um negócio vendendo essa conexão.

THAIS: Esse agora é o Rafael Evangelista, ele é pesquisador aqui no Labjor e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil, o CGI, representando o setor técnico-científico.

DAMNY: CGI. Guarda esse nome que a gente ainda vai voltar nele.

RAFAEL: Mas você tem um certo arranjo que permitiu pequenos empresários desempenharem um papel, de fato, empreendedor. Porque ele é, de fato, de risco. Ele vai lá e compra, ele banca que ele vai ter um público consumidor, ele conhece o público consumidor como ninguém. São os caras que têm 40, 50 clientes. Levando, fazendo essa intermediária. E ajudando uma capilaridade da internet, que se dependesse da Claro, da Vivo, da Tim ou da Oi, não ia ter rolado.

DAMNY: Tá, você pode estar se perguntando porque isso é importante.

THAIS: É que esse cenário pode estar mudando. A Anatel, que é a Agência Nacional de Telecomunicações, derrubou uma norma, a Norma 4.

DAMNY: Ela basicamente separava o oferecimento de serviços de telefonia do oferecimento da internet. Uma das diferenças estabelecidas pela norma é a distribuição de impostos, que muda um pouco de um serviço pra outro.

THAIS: O imposto de telefonia é um pouco maior do que o imposto sobre a internet. A queda dessa norma e a reforma tributária que foi aprovada vão mudar isso e, assim que entrarem em vigor – o que deve acontecer entre 2027 e 2030 – passa a ser tudo a mesma coisa.

DAMNY: Ok, mas qual o problema disso? É que, como a gente começou falando aqui, as empresas menores, que atuam em cidades pequenas, com menos clientes e com pacotes mais baratos, e que no geral oferecem só o serviço de internet, tem uma margem de lucro bem menor do que as grandes empresas.

THAIS: Na pandemia, com uma galera trabalhando mais em casa, a procura por pacotes de internet domiciliares até que cresceu bastante, coisa de 50% a mais!

DAMNY: Mas a pandemia acabou e o mercado esfriou.

[começa música] – Roadside Bunkhouse

PARAJO: aí veio o grande problema, aí começou uma briga de preços. A competição estava muito acirrada, aí virou rouba-monte. Baixo o preço aqui, pego uma área com um cliente, eu baixo mais o meu preço aqui, eu tomo ela de volta. E aí começou a ter uma baita confusão no mercado.

[encerra música]

DAMNY: Você ouviu o Eduardo Parajo, que é coordenador do Comitê de provedores de Internet da Abranet, a Associação Brasileira de Internet.

PARAJO: Mas é o seguinte, primeiro, não dá para a gente dizer que tudo é a mesma coisa, porque não é, de fato não é.

THAIS: O Eduardo tava se referindo a diferença entre Telecomunicação e Internet, que a gente começou a explicar antes. É importante a gente entender como cada coisa funciona pra conseguir pegar as consequências sutis mas muito relevantes da queda da tal da norma 4 da Anatel.

DAMNY: Pra entender melhor, vale a gente te contar um pouco sobre como ela surgiu.

MOZART: A Norma 4 foi editada em 1995. No momento que nem a Anatel tinha sido criada ainda. A Lei Geral de Telecomunicações, que abriu espaço para a privatização do sistema Telebrás, das empresas de telecomunicações do Brasil, é de 1997. E essa lei também criou a Anatel em 1997. Então, o Ministério das Comunicações, na época, publicou a Norma 4 e definiu algumas diretrizes básicas e iniciais de uma internet que estava só começando, estava nascendo no Brasil, e deu algumas garantias que eram importantes na época.

DAMNY: Esse é o Mozart Tenorio, assessor da presidência da Anatel e membro suplente no CGI, na vaga destinada à Anatel. Ele vai seguir contando pra gente sobre a história da internet no Brasil e a importância da Norma 4.

MOZART: Dois anos e meio depois, em 1997, a Lei Geral de Telecomunicações chegou, ela recepcionou a Norma 4. Basicamente, o que tem escrito na Norma 4 está repetido no artigo 61 da Lei Geral de Telecomunicações, que são as salvaguardas, as garantias de separação entre o que é internet e o que é telecomunicações no sentido jurídico brasileiro.

THAIS: O Mozart tá chamando atenção para o fato de que, no Brasil, telecomunicações e internet são serviços diferentes não apenas do ponto de vista dos impostos. Na prática, as duas se desenvolveram de maneira separada. Quando você está usando a telecomunicação, o que está acontecendo por trás do seu mecanismo de acesso é sempre um acesso de ponto a ponto.

DAMNY: Suponha que você queira conversar com um parente que está na mesma cidade que você, você liga para ele e as linhas telefônicas realizam uma conexão entre o seu telefone e o do seu parente. Agora suponha que você quer falar com um amigo que está em outro país. As linhas telefônicas vão realizar uma outra ligação entre o seu telefone e o do seu amigo. Esse é o funcionamento típico das telecomunicações. Com a internet, a coisa muda de figura. Escuta o Basílio de novo.

BASILIO: A internet é uma rede já completamente conectada, o tempo todo conectada. Então, ela precisa das telecomunicações para que o cliente chegue até a internet. Mas, quando chega na internet, os protocolos são outros.

THAIS: Com a internet, as coisas ficam um pouco mais complexas. Pensa, por exemplo, nas ligações de grupo que a gente consegue fazer pelo aplicativo de mensagens. Isso não seria possível no modelo clássico de ponto a ponto das telecomunicações. Porque você tem mais de 2 pontos conectados ao mesmo tempo.

DAMNY: Isso acontece principalmente naquela camada intermediária do funcionamento da internet. Lembra que a gente falou lá no começo? Embaixo de tudo tem a parte “física”, cabos, instalação e etc. Em cima, dependendo dessa infraestrutura, tem a lógica de conexão desses equipamentos.

BASILIO: Ou seja, o serviço de conexão à internet dele começa na hora que ele recebe os clientes na fibra, dali pra frente começa o serviço de conexão à internet dele com as diversas saídas possíveis. Porque, como ele tem várias saídas, ele tem que usar os protocolos para ver “este cliente eu vou mandar por aqui, este outro eu vou mandar por aqui, este aqui pelo serviço que ele está pedindo por aqui é melhor”. Então, isso é a conexão à internet.

DAMNY: Nesse modelo, não temos mais uma linha conectando um ponto a outro, mas uma rede de pontos conectados ao mesmo tempo. O Mozart deu outro exemplo disso.

MOZART: Por exemplo, os data centers. Os dados vão lá, eles são processados de alguma maneira e voltam, tudo isso, pela rede de telecomunicações. Mas aquele lugar, aquela infraestrutura de data center, ela não é de telecomunicações clássicas, porque ela não vai te conectar. Então, assim, o serviço, as infraestruturas que não te conectam não são de telecomunicações.

THAIS: Essa questão da conectividade é importante.

MOZART: A Anatel já se debruçou sobre esse problema, já julgou, já deixou bem claro que, quando o serviço não te presta conectividade, ele não é um serviço de telecomunicações.

THAIS: Por exemplo, os canais abertos de televisão funcionam no modelo clássico de telecomunicações. O que a operadora de TV faz é me conectar à transmissão do canal que eu escolhi assistir.

DAMNY: Agora, os streamings não fazem a mesma coisa. Ao acessar uma plataforma de filmes, eu tenho acesso apenas ao acervo daquela empresa. Ou seja, ela não me conecta com algum outro ponto, ela só me dá acesso aos arquivos de mídia.

MOZART: Então, o streaming não é um serviço de telecomunicações, o mesmo raciocínio vale para a internet.

THAIS: Então, do ponto de vista técnico, telecomunicações e internet funcionam de maneiras distintas e que podem ser separadas, ainda que elas sejam dependentes entre si. Foi exatamente essa separação que a Norma 4 estabeleceu.

RAFAEL: E com essa separação, você passou a ter essa entidade, que é o CGI, como responsável pela distribuição de IPs no Brasil. E pelo registro de nomes de domínio. Então, todo nome de domínio .br é distribuído pelo CGI. E quem organiza todo esse processo é, hoje é o NIC, que é a entidade, é o CNPJ do CGI.

DAMNY: Aqui de volta o Rafael, pesquisador do Labjor, explicando o que é o CGI, que a gente falou lá no começo que voltaria pra essa história.

RAFAEL: Quando eles fundam o CGI, o CGI vai ser essa entidade multissetorial que vai tomar as decisões técnicas relativas a esse gerenciamento da internet, a internet como raiz, a internet como uma infraestrutura que sustenta a web.

DAMNY: Ou seja, existe também uma separação e delimitação da responsabilidade de gestão da internet. Baseado na Norma 4, a Anatel cuida da infraestrutura básica, compartilhada com a rede de telecomunicações. Cabeamento, instalação, etc.

THAIS: E o CGI cuida principalmente daquela camada do meio, da distribuição dos domínios, da lógica de funcionamento e conexão a partir dessa infraestrutura. Também fazem pesquisas e elaboram diretrizes sobre a camada de conteúdo, aquela visível e que a gente efetivamente interage no nosso dia a dia.

DAMNY: Mas, se a coisa fosse realmente simples assim, a gente não tava aqui te explicando tudo isso. O que acontece é que às vezes pode ser bem difícil separar uma coisa da outra.

THAIS: Pensa no caso dos streamings que a gente acabou de falar. Ok, eles não são telecomunicações, porque não me conectam a lugar nenhum. Mas, eles precisam do sistema de cabos que um serviço de telecom instalou na minha casa pra poder funcionar.

DAMNY: E o mesmo vale pra Internet, sem a camada de infraestrutura, que é regulada pela Anatel, não tem como pensar a lógica de distribuição e funcionamento, que fica sob o guarda-chuva do CGI. Escuta outro exemplo do Mozart.

[começa música] –  Slider

MOZART: por exemplo, o cabo submarino. Você não pode assinar um serviço de cabo submarino para levar seus dados aos Estados Unidos, ou à Europa, ou a qualquer lugar do mundo. Mas, a rede de telecomunicações usa esses cabos, porque sem ela, a conectividade que o cliente espera, que o assinante espera, não se realiza. E aí é que entra a parte que eu disse que é muito turvo, porque quase tudo, hoje em dia, é necessário para conectar. E aí, quando a Anatel regula esses equipamentos, homologa e autoriza o uso, a gente entra num terreno que fica muito difícil dizer o que é somente internet e não faz parte da rede de telecomunicações e vice-versa.

THAIS: E a coisa vai ficando mais complicada. Porque a situação vai além de só definir limites de regulação.

DAMNY:  A questão é que, na prática, a Anatel e o CGI atuam de maneiras diferentes. A Anatel acaba atuando de maneira muito próxima das empresas de telecomunicações, escuta o Rafael aqui de volta.

RAFAEL: Porque as empresas têm muita grana. E a Anatel, nos últimos dois, três anos, tem tido um protagonismo enorme, porque eles querem ser a entidade da internet no Brasil.

DAMNY: Já o CGI opera numa outra lógica. O Comitê não tem fins lucrativos. O dinheiro arrecadado através dos domínios de internet, por exemplo, é todo reaplicado em cursos, pesquisas, formações. Menos voltado pro mercado, e mais pros usuários da rede.

RAFAEL: O CGI pratica preços que não são preços de mercado.Custa 40 reais um domínio, faz, sei lá, 10 anos. O objetivo é vender mais domínios e ter uma internet mais brasileira.

[sobe som, pausa de respiro, segue sem bg]

THAIS: Ok, até aqui a gente entendeu mais ou menos como a internet funciona no Brasil, e que tá rolando uma certa disputa pra decidir quem vai poder regular o que nesse cenário.

DAMNY: Hoje, a Anatel fica responsável pela infraestrutura básica, compartilhada com as telecomunicações. E o CGI fica responsável pela organização da camada de cima, com a operação da internet em si.

THAIS: Verdade que já tinham uns atritos entre essas duas entidades, mas a coisa esquentou mais por conta da queda da Norma 4 da Anatel, que fazia uma separação desses tipos de serviços prestados e da cobrança de impostos de cada um deles.

DAMNY: Essa coisa dos impostos apareceu com frequência aqui e acho que é importante a gente retomar um pouquinho. A gente perguntou pro Mozart, o representante da Anatel no CGI, sobre essas mudanças todas.

MOZART: Agora, para a questão tributária, aí sim, tem um impacto que sempre foi muito debatido no setor. Envolve, de maneira geral, os entes federativos dos estados e dos municípios, porque o serviço de internet é um serviço de valor adicionado, e por ser esse tipo de serviço, ele recolhe ISS, as prefeituras. E o serviço de telecomunicações, ele recolhe ICMS aos estados. Então, essa separação, do ponto de vista tributário, ela era muito relevante para os entes federativos.

THAIS: A princípio, a gente achou que essa questão tributária fosse o ponto mais importante aqui. Afinal, mexe com o recolhimento de impostos de prefeituras e estados e também com a capacidade de se manter pequenos negócios, que poderiam sofrer com impostos maiores, como a gente falou antes.

DAMNY: Isso porque o mercado de internet tem crescido cada vez mais e tem se tornado também cada vez mais competitivo. Nesse contexto, mudar a configuração tributária pode ser decisivo pra saber quem continua nesse mercado e quem, infelizmente, vai acabar perdendo. Uma coisa são as grandes empresas de telecomunicações e outra, muito diferente, são os pequenos provedores de internet.

PARAJO: Você está falando de um cara muito pequeno. E quando você traz um peso regulatório para esse cara, um monte de regras, um monte de coisas que esse negócio tem que fazer, é complicado. Ele não tem escritório de advocacia, ele é a esposa, o filho, sei lá, um primo, um irmão, que é sócio do cara e é uma empresa pequena. Então, a gente sempre trabalhou junto à agência no sentido seguinte, olha, não dá para você pegar uma regra que você pega como uma big empresa de telecom e aplicar essa regra ali.

THAIS: Aqui de volta o Eduardo Parajo, ele e o Basílio fazem parte de associações de provedores de Internet no Brasil. Você ouviu bastante dos dois ao longo desse episódio.

DAMNY: Eles ajudaram a gente a entender que, no fundo, essa questão tributária é um problema menor do que parece.

BASILIO: A norma 4, ela tem vários fatores, que é assim. A Anatel diz que um dos motivos de tirar a norma 4 é que ela é uma questão meramente tributária, mas não é verdade.

THAIS: Até porque, com a última reforma tributária aprovada, essa diferença entre os tipos de impostos já vai deixar de existir até 2030.

BASÍLIO: Então, é até prematuro querer acabar com a Norma 4 agora, sendo que, por questões tributárias, daqui a mais 3, 4, 5 anos, isso já vai acabar naturalmente, essa separação tributária. Mas o problema da Norma 4 não é meramente tributário, é uma questão de conceito, de separar o que é telecomunicações do que é internet.  São coisas completamente diferentes.

PARAJO: E não é isso que estamos falando, estamos falando uma coisa conceitual.A questão tributária vai ser resolvida na reforma, ele está caminhando e vai ter o seu desfecho, dá o que algum tempo. Agora, o conceito do que é a separação dos serviços, do que é o que, não tem absolutamente nada a ver com isso.

DAMNY: Outro fator que leva o Eduardo, o Basílio, o Rafael e mesmo a gente a acreditar que tem mais coisa por trás dessa mudança além de impostos, é um projeto de lei que começou a circular no ano passado.

[começa música] – Roadside Bunkhouse

THAIS: O PL 4.557, de 2024, quer centralizar a regulamentação da internet sob responsabilidade da Anatel, que se tornaria responsável, por exemplo, por registrar e manter os nomes de domínio e as distribuições de IPs pelo Brasil. Hoje, quem faz isso, lembra, é o CGI.

DAMNY: A gente quis saber do Mozart qual é a visão da Anatel sobre esse projeto de lei.

MOZART: Nosso posicionamento, de maneira geral, é, olha, a gente é uma agência que foi criada em 1997, a gente já está fazendo 28 anos, e agora com esse turbilhão de novidades e de mudanças, a gente se coloca à disposição do Estado brasileiro, do Congresso Nacional, da Presidência da República, do povo brasileiro, para que a gente assuma novas atribuições da maneira que o Congresso achar e a Presidência da República acharem justo. E essa questão de centralizar muito poder, pouco poder, muita atribuição, pouca atribuição em uma ou mais agências, é um debate da mesma maneira que está sendo travado no mundo inteiro, não somente no Brasil.

THAIS: Quando a gente fala de centralização desse poder regulatório sobre a internet, a gente tá falando basicamente de duas coisas: de governança e de soberania.

[encerra música]

DAMNY: Governança, de modo geral, é a forma como as regras, as normas e as ações são pensadas, estruturadas, realizadas, reguladas e responsabilizadas. Pensando especificamente na internet, esse conceito trata das atividades que pensam sobre o desenvolvimento e o uso da internet.

THAIS: Falando em termos práticos, estamos falando das atividades realizadas pelo CGI, pelo NIC.BR, pela Anatel, pelo governo brasileiro e pela sociedade civil interessada no planejamento, no desenvolvimento e na execução de princípios e regras que organizam e regulam a internet no Brasil.

DAMNY: E pra ter uma boa governança, a gente entende que o ideal é ter a participação efetiva do maior número possível de agentes envolvidos no assunto. E, com a atuação do CGI, o Brasil é uma referência mundial nisso. Escuta o Eduardo aqui.

PARAJO: Se hoje nós temos uma internet que é resiliente, que é bastante distribuída, existe uma concentração grande em São Paulo, mas cada vez está sendo mais distribuída, que hoje o conteúdo está mais perto do usuário é graças ao trabalho do Comitê Gestor e do NIC, que tem um trabalho muito forte de educação, de pesquisa.

THAIS: E o trabalho do CGI, lembra, segue um modelo que a gente chama de multissetorial. O que significa que o Comitê reúne pessoas de diferentes áreas pra debater internet no Brasil.

DAMNY: Tem representantes do mercado, da sociedade civil, das associações de internet e de membros técnicos-científicos, como o Rafael.

RAFAEL: Aí a Anatel surge como, nesse projeto de lei, querendo ser ela a grande entidade reguladora e aí pegando o CGI, que tem um caráter multissetorial, e enfiando debaixo dela. E dizendo, vamos fazer multissetorialismo também. Mas, que multissetorialismo é esse que você está debaixo de uma autoridade, uma entidade reguladora? Não é uma condição horizontal. Que liberdade os conselheiros vão ter de fato? Hoje a Anatel não respeita o CGI.

[silêncio]

[música] – Highway 94

THAIS: Tirar o poder de gestão de um órgão multissetorial e centralizar na agência de telecomunicações pode ter uma série de consequências. O Eduardo Parajo ajudou a gente a visualizar algumas delas.

DAMNY: Uma delas é concentrar ainda mais a prestação de serviços em grandes operadoras. O que, como a gente já viu, pode ser um problema pra cidades menores, populações mais afastadas e pequenas empresas provedoras de internet.

PARAJO: Eu acho que no momento que você tentar deixar a internet dentro, considerar ela um serviço de telecomunicações, você, de fato, vai ter um problema de médio e longo prazo. Você vai diminuir a concorrência.

THAIS: Outra questão importante é que Anatel já tem sua carga de funções.

PARAJO: Primeiro que a agência tem um papel fundamental na parte de telecomunicações que ela está esquecendo, que é cuidar das telecomunicações no Brasil.

DAMNY: E, segundo o Eduardo, tem uma série de pontos que já são de responsabilidade dela que podem ser melhorados.

PARAJO: Outra, tem questões estratégicas que a agência poderia estar trabalhando na parte de telecomunicações para o Brasil. Nós temos, às vezes, muita concentração nas localidades de serviços de telecomunicações e escassez em outras. Podia estar sendo feito um trabalho forte nesse sentido.

THAIS: Resumindo, a mudança da Norma 4 envolve uma série de pontos delicados pra governança da internet no Brasil. Ela pode afetar a cobrança de impostos, que tem um peso maior em pequenos provedores. Mas ela também borra as margens do que é internet e do que é telecomunicações, abrindo caminho pra mudanças mais profundas.

PARAJO: Mas, além desse custo adicional, vamos dizer assim, eu acho que tem um custo que é o futuro da evolução da internet no Brasil. Eu acho que isso é um ponto que a gente tem que estar com muita atenção.

THAIS: Quando o Eduardo Parajo fala sobre o futuro da evolução da internet no nosso país, ele está falando exatamente da governança da internet no Brasil. Como foi possível ouvir, a maior parte dos nossos entrevistados se preocupa com o fato de que colocar telecomunicações e internet debaixo do mesmo guarda-chuva pode ameaçar exatamente a governança da internet brasileira.

DAMNY: Sendo tudo telecomunicações, tudo estará sob o gerenciamento da Anatel que, como vimos, acaba atuando muito mais sob a lógica das grandes empresas que dominam o mercado brasileiro.

THAIS: De um modo geral, ainda que os argumentos de quem é favorável ao fim da Norma 4 recaiam sobre essas questões tributárias, o cerne da questão parece ser muito mais mercadológico.

DAMNY: Mas, o que isso tem a ver com soberania, que a gente falou antes? Soberania é um conceito normalmente utilizado quando se fala sobre estados nacionais, ou seja, países. Nesse contexto, soberania fala sobre a capacidade de um país se auto-governar, de ser capaz de decidir sobre si mesmo, seu presente e seu futuro sem a interferência de outros países ou entes governamentais.

THAIS: Pensando os contextos digitais, os debates sobre internet definem também a ideia de soberania digital, que é a capacidade de controlar e dirigir os próprios ativos digitais, ou seja, os dados, os protocolos, os softwares, os hardwares e as infraestruturas do digital e da internet no próprio país.

[começa música] – Highway 94

RAFAEL: É um negócio de desenvolvimento econômico, e aí usar a palavra soberania do jeito que você está usando, eu acho legal, porque quando começou esse movimento de soberania digital, a intenção nunca foi falar só de Estado, mas de falar de soberania trazendo essa perspectiva de um controle comunitário sobre essa infraestrutura digital.

THAIS: E isso reflete muito também na ideia de popularizar o acesso, entendendo que a possibilidade de cada vez mais brasileiros poderem acessar a internet, em um contexto que ela cada vez mais faz parte do cotidiano, é também um ato de soberania.

DAMNY: Quem determina o acesso à internet no Brasil são as políticas de governança, então deixar essas políticas na mão apenas do setor empresarial dificulta uma governança mais democrática e popular que vai na contramão da ideia de soberania digital.

[encerra música]

DAMNY: Esse episódio foi produzido por Mayra Trinca, Thaís Lassali e por mim, Damny Laya. A revisão é da Lívia Mendes e do Rafael Evangelista. Os trabalhos técnicos são da Carolaine Cabral.

THAIS: A trilha sonora é do Blue Dot Sessions e a vinheta do Oxigênio é do Elias Mendez.

DAMNY: Este episódio é parte dos trabalhos da bolsa Mídia Ciência, da Fapesp. O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp.

THAIS: Obrigada por ouvir até aqui, se quiser, deixa seu comentário sobre esse episódio na sua plataforma de áudio preferida ou nas redes sociais. Você encontra a gente em todas as plataformas como Oxigênio Podcast.

[VINHETA ENCERRAMENTO]

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