Roteiro #204 A Ciência na Busca por Novos Medicamentos
Você já se perguntou como novos medicamentos são desenvolvidos? Neste episódio, vamos apresentar uma das abordagens científicas para desenvolver novos tratamentos para doenças humanas: a descoberta de fármacos baseada em alvos biológicos. Você vai conhecer como a ciência une o trabalho de diferentes áreas do conhecimento para encontrar moléculas que podem se tornar medicamentos, tanto a partir de experimentos de bancada, nos laboratórios, quanto com o uso de ferramentas computacionais.
Você vai ouvir entrevistas com Katlin Massirer, farmacêutica e pesquisadora que coordena o Centro de Química Medicinal (CQMED) da Unicamp e com Karina Machado, professora na Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e coordenadora do Laboratório de Biologia Computacional (Combi-Lab). Elas vão explicar como é realizado o complexo trabalho que envolve equipes multidisciplinares para identificar e produzir proteínas-alvo em laboratório, testar milhares de moléculas capazes de modular a função dessas proteínas e mostrar como a ciência da computação pode acelerar essas etapas.
O episódio foi produzido por Lívia Mendes e Daniel Rangel e faz parte do trabalho de divulgação científica que o Daniel Rangel desenvolve no CQMED da Unicamp financiado pelo projeto Mídia Ciência da FAPESP.
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ROTEIRO
[música – BG]
Lívia: Capivasertibe. Você provavelmente nunca ouviu falar nesse nome, mas ele nomeia algo que tem uma importância muito relevante na saúde da nossa população, principalmente na saúde das mulheres.
Lidia: Agora, se a gente falar “Outubro Rosa”, você deve associar o nome à campanha de conscientização sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama, que aliás está acontecendo no mês que esse podcast tá sendo gravado.
Lívia: Isso mesmo. O “Outubro Rosa” é um movimento internacional de conscientização no controle do câncer de mama, criado no início da década de 1990, com a primeira Corrida pela Cura, em Nova Iorque. No Brasil é realizado desde 2002, e foi instituído por lei federal em 2018.
Lidia: Mas, você deve estar se perguntando, qual a relação do Capivasertibe com o Outubro Rosa?
Lidia: Então, o capivasertibe é um medicamento usado pra tratar certos tipos de câncer de mama avançado. Ele bloqueia uma proteína chamada AKT, que atua de forma desregulada em células cancerígenas, inibindo o crescimento do tumor, dando assim uma maior expectativa de vida pros pacientes.
Lívia: Mas, porque a gente escolheu falar exatamente do tratamento do câncer de mama com capivasertibe nesse episódio?
Lidia: Porque hoje a gente vai te contar uma abordagem da ciência pra desenvolver novos medicamentos, e o capivasertibe é um dos exemplos de medicamento disponível nas farmácias desenvolvido a partir dessa abordagem.
Lívia: Essa abordagem é a descoberta de novos fármacos baseada em alvos biológicos e já já você vai entender isso.
[música de transição]
Lidia: Todo mundo já precisou de um medicamento em algum momento da vida. Desde um tratamento pra uma dor leve, causada por algum acidente doméstico, ou um para aliviar um mal-estar e até pras doenças mais graves, como os diferentes tipos de cânceres.
Lívia: Mas, provavelmente você nunca parou pra pensar como novos medicamentos são descobertos. E é exatamente isso que a gente vai te contar nesse episódio.
Lidia: Você vai conhecer como a ciência une o trabalho de diferentes áreas do conhecimento pra encontrar moléculas que podem se tornar fármacos. Tanto a partir de experimentos de bancadas, nos laboratórios, quanto a partir de ferramentas da computação.
Lívia: Eu sou a Lívia Mendes e esse é o episódio “A Ciência na Busca por Novos Medicamentos”.
Lidia: Eu sou a Lidia Torres. Vem com a gente embarcar no mundo invisível dos genes, das proteínas e das pequenas moléculas, pra entender como os cientistas desenvolvem os medicamentos que a gente utiliza pra tratar as nossas enfermidades.
Lívia: Hoje a gente vai falar das fases iniciais do desenvolvimento de novos fármacos, mais especificamente das estratégias de descoberta baseadas em alvos biológicos.
[Vinheta Oxigênio]
Lívia: A história da descoberta de novos fármacos nos mostra que a humanidade sempre buscou soluções na natureza.
Lidia: Basicamente, existem duas formas de se descobrir um novo medicamento. A primeira delas é essa, mais lógica, que a Lívia falou, a partir de compostos naturais. Sabe aquele cházinho que a sua vó te indicava pra tratar uma indisposição? Então, esse é o costume mais antigo dos seres humanos, usar compostos naturais pra aliviar sintomas que nos incomodam.
Lívia: Mas, lembra do capivasertibe? Que a gente te apresentou lá no início do episódio? Ele foi descoberto de outra forma, sua origem não é a partir de produtos naturais, seu princípio ativo é uma molécula sintetizada em laboratório.
Lidia: A história do capivasertibe começa com a busca por tratamentos que pudessem atacar o câncer de forma direcionada, agindo nas vias de sinalização celular, que quando desreguladas fazem as células crescerem sem controle.
Lívia: Nos anos 2000, cientistas já sabiam que muitas formas de câncer, especialmente o câncer de mama, apresentavam alterações em um caminho biológico chamado PI3K/AKT, uma espécie de “interruptor” que, quando ligado de forma permanente, fazia as células se multiplicarem descontroladamente.
Lidia: Então, pesquisadores do Instituto de Pesquisa sobre Câncer da Universidade de Cambridge e das empresas Astex e AstraZeneca investiram esforços para desenvolver uma molécula capaz de bloquear a enzima AKT, que é uma das peças centrais desse caminho. Depois de anos de estudos e testes em laboratório, eles desenvolveram o “capivasertibe”, que é uma molécula, pequena, sintética que inibe seletivamente as três isoformas da proteína AKT.
Lívia: Os primeiros ensaios clínicos em humanos começaram por volta de 2013, mostrando que o medicamento era eficaz, principalmente em pacientes com mutações genéticas. Em combinação com terapias hormonais, ele conseguiu reduzir o crescimento tumoral em mulheres com câncer de mama avançado.
Lidia: Dez anos depois, em 2023, após resultados positivos de estudos clínicos em um grupo maior de seres humanos, o capivasertibe foi aprovado, em associação com fulvestranto, e se tornou um dos representantes da nova geração de medicamentos desenvolvidos com foco em alvos específicos disponíveis nas farmácias.
Lívia: Essa é, então, a outra forma que a gente tem de encontrar moléculas pra tratar doenças, ou seja, sintetizando essas moléculas quimicamente em laboratório pra que se liguem de forma seletiva em proteínas relacionadas a alguma doença.
Lidia: É a descoberta de novos fármacos “baseada em alvos”, que a gente falou lá no início.
Lívia: Esse método “baseado em alvos” funciona assim: ao invés dos cientistas partirem de uma molécula com efeito conhecido na natureza, e daí, descobrirem em qual alvo do corpo humano ela atua, eles fazem o caminho inverso selecionam um alvo, ou seja, alguma proteína que esteja relacionada com uma doença, como no caso do câncer de mama e o caminho biológico chamado PI3K/AKT, e, a partir daí, buscam moléculas que possam modular a sua atividade.
[som de laboratório]
Katlin Massirer: Então, aqui dentro temos biólogos, físicos, engenheiros, farmacêuticos, químicos, essas pessoas atuam conjuntamente em diferentes plataformas. Temos uma plataforma, um local onde fazemos produção de proteína, outro local físico no mesmo espaço onde fazemos as moléculas, outro local computacional e um local que é uma sala de células, onde depois nós verificamos nas células se essas moléculas funcionam. Então aqui é a parte de ensaios, né? Para validar. E tem também a parte onde os cientistas ficam juntos e lá a química sintética.
Lívia: Essa é a Katlin Massirer. Ela é farmacêutica e pesquisadora e, nesse áudio que você ouviu, ela tava apresentando pra gente como funciona o laboratório que ela coordena aqui na Unicamp, o Centro de Química Medicinal, CQMED.
Katlin Massirer: Neste laboratório, como se nós trabalhássemos como uma mini empresa farmacêutica na descoberta de novas moléculas que levarão a novos medicamentos a longo prazo.
Lidia: Lembra que a gente falou dos medicamentos que são descobertos por meio daquele método “baseado em alvos”.
Lívia: Os pesquisadores que trabalham junto com a Katlin, no CQMED, fazem exatamente esse trabalho.
Lidia: As pesquisas que são desenvolvidas ali atuam na fase inicial da busca por novas moléculas com potencial terapêutico. No CQMED os cientistas de diferentes áreas do conhecimento trabalham juntos pra identificar os melhores alvos biológicos, produzir esses alvos em laboratório e, daí, iniciar as rodadas em busca de moléculas capazes de interagir com eles e realizar as modificações químicas pra otimizar a ligação entre eles.
Lívia: A Katlin explicou pra gente que as etapas dos estudos, desenvolvidos no CQMED, envolvem a escolha de uma proteína humana (ou de algum parasita), que tenha relação com uma doença. Como a gente já tinha visto lá no caso da proteína AKT, no câncer de mama. Daí, os pesquisadores fazem uma clonagem e produzem essa proteína em laboratório, que depois irão ser testadas com milhares de moléculas químicas iniciais, buscando aquelas que se encaixam nessas proteínas.
Katlin Massirer: E ao longo desse processo, a proteína precisa ser estudada em conjunto com essa molécula, para que nós possamos fazer etapas que permitam entender se elas poderão atuar em conjunto no ser humano e bloquear alguma doença.
Lidia: O laboratório funciona como se fosse uma indústria farmacêutica pequena. Ali os pesquisadores produzem proteínas, que são isoladas, utilizam sistemas de separação e filtragem pra purificar a proteína de interesse e fazem também a cristalografia dessas proteínas com as moléculas ligantes, pra entender a forma como elas interagem.
Katlin Massirer: Nós enviamos esses cristais para uma linha de difração de raio X, que fica localizado no grande laboratório, que tem um acelerador de partículas, o CNPEM, aqui ao lado da UNICAMP.
[sons de ícones]
Lívia: Moléculas ligantes são aquelas que possuem alguma interação com as proteínas alvos. Essas moléculas são chamadas de Hits e passam por modificações químicas pra aumentar a potência de ligação e sua seletividade pela proteína específica que está servindo como alvo, evitando que se liguem em proteínas parecidas e ocorram possíveis efeitos colaterais.
Lidia: O CNPEM, que a Katlin citou, é o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, uma instituição científica de fronteira, aberta, multidisciplinar e multiusuário. O CNPEM atua em áreas como nanotecnologia, biociências, biotecnologia, biorrenováveis e instrumentação científica, e oferece estrutura pra comunidade científica, promovendo a pesquisa científica e a inovação.
Lívia: O acelerador de partículas do CNPEM, produz luz síncrotron, um tipo de radiação muito intensa produzida quando elétrons são acelerados a velocidades próximas à da luz e desviados por campos magnéticos. Essa luz especial permite investigar a estrutura da matéria em escala nanométrica, auxiliando os cientistas no estudo das estruturas tridimensionais de proteínas e como os candidatos a fármacos se ligam nelas.
Katlin Massirer: E, como próximas etapas, uma vez que a gente tem uma proteína isolada e moléculas que possam se ligar como um encaixe de Lego. Nós temos que mostrar que essas moléculas químicas, que virão a ser novos medicamentos, que elas consigam realmente melhorar ou bloquear uma atividade dessa proteína.
Lívia: A Katlin explicou que a gente tem mais de vinte mil tipos de proteínas no nosso corpo e cada uma tem uma função num determinado momento. Quando essas proteínas são produzidas em excesso, estão super ativas ou não estão funcionando corretamente, nós podemos desenvolver doenças, como acontece em alguns tipos de cânceres. Os medicamentos, então, funcionam em nosso corpo como moduladores da função dessas proteínas.
Lidia: Outra etapa que também faz parte do processo de pesquisa na criação de novos medicamentos é a etapa computacional.
Lívia: Todo esse processo inicial leva em torno de cinco anos pra ser completado, passando por todos esses ciclos que a gente te contou. Ah, e é importante lembrar que todo esse trabalho é feito por uma equipe multidisciplinar, em que atuam diferentes profissionais como biólogos, físicos, engenheiros, farmacêuticos e químicos.
Lidia: E a Katlin também contou que essas etapas já envolvem parcerias com algumas indústrias farmacêuticas nacionais. Essa parceria é possibilitada pela Empresa Brasileira de Pesquisa em Inovação Industrial, a Embrapii. Desde 2017 o CQMED tá cadastrado como uma unidade Embrapii de fármacos e biofármacos e pode fazer parcerias com empresas e startups do ramo.
Katlin Massirer: Nós queríamos trazer projetos de inovação radical com a indústria farmacêutica brasileira, com esse grande foco de realmente descobrirmos novos medicamentos nacionais, medicamentos que sejam desenvolvidos no Brasil por brasileiros.
Lívia: Esse tipo de inovação radical é diferente da inovação incremental, quando já existe um medicamento e as pesquisas servem pra melhorar ou aplicar esse medicamento em outra doença. O que, segundo a Katlin, já é feito bastante aqui no Brasil.
Lidia: Agora, com todas essas informações, você já deve estar se perguntando o que precisa ser feito pra que um medicamento chegue no balcão da farmácia, depois de passar por todos esses processos.
Katlin Massirer: Então, isso são estudos em várias fases, né? A gente fala de estágio inicial, pré-clínico, fase 1, fase 2 e, depois, esse fármaco iria pro mercado.
Lívia: São etapas bem demoradas e rigorosas pro medicamento chegar no mercado e a gente poder utilizar de forma segura nos tratamentos.
Lívia: Todo esse processo parece complexo e realmente é. Além de ter um custo alto e precisar de muito tempo de esforços em pesquisa, algumas estimativas sugerem que, da bancada até ser disponibilizado na farmácia, o desenvolvimento de um medicamento pode custar entre 1 e 2 bilhões de dólares e demorar de 10 a 15 anos.
Lidia: Então, depois de encontrar uma molécula com propriedades interessantes pra se tornar um novo fármaco, ela precisa ser testada em pequenos animais, depois em pessoas saudáveis e só daí, então, poderão ser administradas, de uma maneira muito controlada, num grupo de pacientes enfermos.
Lívia: Tudo isso tem um custo bem elevado. Por isso, quanto mais bem feita for a pesquisa na fase inicial, maior a chance da molécula avançar até ficar disponível pra utilização em tratamentos.
Lidia: E, como a gente já te contou, é nessa fase inicial que os pesquisadores do CQMED usam técnicas pra testar se as moléculas mais promissoras são eficientes contra a proteína-alvo e em células cultivadas em laboratório.
Lívia: Esses testes revelam informações sobre a toxicidade da molécula que está sendo estudada e se ela é capaz de penetrar a membrana celular e encontrar a proteína alvo sem causar problemas pra célula. Assim, quando chega nas fases mais adiantadas, a molécula já tem uma chance maior de passar nos testes clínicos em humanos.
[música de transição]
Lívia: Uma conexão importante entre essas áreas da química e da biologia com a ciência da computação pode acelerar essas primeiras etapas na descoberta de novos medicamentos e, consequentemente, tornar os custos menos elevados.
Lidia: Inclusive, ano passado, em 2024, os ganhadores do Nobel de Química serviram como um bom exemplo de como a colaboração científica interdisciplinar pode render bons resultados.
Lívia: Os ganhadores foram o pesquisador David Baker e a dupla de ingleses Demis Hassabis e John Jumper.
Lidia: O primeiro desenvolveu uma ferramenta computacional que permite desenhar proteínas completamente novas, já os últimos, ambos da empresa Google DeepMind, criaram um sistema de IA capaz de prever o formato tridimensional das estruturas de proteínas a partir de suas sequências de aminoácidos, a ferramenta AlphaFold.
Lívia: O comitê do Nobel premiou o esforço conjunto de diferentes áreas, aquelas que a gente citou antes, a química, a biologia e a ciência da computação, como um incentivo a essas abordagens mais integradas de pesquisa científica.
Karina Machado: Então, isso tem um grande impacto na descoberta de fármacos, porque quando eu quero fazer o planejamento de fármacos, se ele é baseado na estrutura do alvo, eu preciso da estrutura do alvo. Então, o AlphaFold, que foi o algoritmo, né, proposto por esse grupo do DeepMind, que ganhou o prêmio Nobel de 2024, ele tem esse potencial enorme na descoberta de fármacos que é descobrir a estrutura do alvo que a gente vai então fazer o planejamento das moléculas.
Lidia: Essa que você acabou de ouvir é a Karina Machado, ela é professora na Universidade Federal do Rio Grande, a FURG, e coordena o Laboratório de Biologia Computacional, o Combi-Lab, em parceria com o professor Adriano Werhli.
Karina Machado: Então, eu sou formada em engenharia de computação, mestrado e doutorado em ciência da computação, pela PUC do Rio Grande do Sul. Mas, desde o mestrado eu comecei a trabalhar com a bioinformática. Então, essa área de pesquisa, assim, de busca de fármacos, né?
Lidia: Como a Karina falou ali na apresentação, ela também trabalha buscando novos fármacos, inclusive colaborando com os pesquisadores aqui do CQMED. Mas, a busca da Karina e da sua equipe é realizada de forma diferente, utilizando o aprendizado de máquina e, principalmente, o uso da Inteligência Artificial.
Lidia: A Karina listou pra gente alguns exemplos de como funciona a utilização da Inteligência Artificial, naquelas diversas etapas que a gente te contou, pra que um novo medicamento seja produzido e daí utilizado no tratamento de doenças.
Lívia: Um desses exemplos é o rastreamento pra identificar moléculas capazes de se ligar na proteína-alvo.
Karina Machado: Então a gente faz as simulações de docking molecular e outras simulações no computador, né? De moléculas candidatas à inibidora e essas essas simulações nos ajudam a selecionar moléculas mais promissoras pras etapas experimentais, que são geralmente muito mais caras e mais custosas em tempo também, né? Então, a IA, ela pode atuar em vários momentos nesse processo da seleção das moléculas promissoras.
Lidia: Esse procedimento utilizando IA permite testar um número grande de moléculas por um custo reduzido quando comparado aos experimentos em laboratório.
Karina Machado: A gente tem base de dados hoje, como o Enamine, que tem bilhões de moléculas, né? Então, não tem como testar isso em bancada, nem comprar essas moléculas,nem testar em bancada. Então, a gente pode usar IA para fazer filtros, de acordo com as características do alvo.
Lívia: Outro exemplo do uso da IA seria pra treinar modelos que avaliam as propriedades das moléculas que os pesquisadores estão prevendo, pra serem utilizadas no futuro.
Karina Machado: Então, esse algoritmo vai entender a linguagem das moléculas, ele vai ser capaz de gerar novas moléculas, assim como ele gera palavras para gente no nosso dia-a-dia que a gente usa esses algoritmos, né? Ele é capaz de gerar moléculas. E além de só gerar moléculas aleatório, com essa linguagem que ele foi treinado, ele já tem as regras de síntese dentro dele. Então ele gera moléculas que é possível de sintetizar em laboratório.
Lívia: É como se o algoritmo conhecesse as regras químicas pra produzir uma molécula antes mesmo dela existir e já ter uma idéia de como ela irá se comportar em relação a proteína alvo que está sendo investigada.
Karina Machado: Então, imagina que tu é um um farmacêutico, né, que que desenha moléculas novas no computador. Tu não tem ideia se essas moléculas têm propriedades que são características de um fármaco. Então, propriedades de absorção e as propriedades ADMET, que a gente chama, né? Então, existem vários algoritmos baseados em inteligência artificial que são capazes de fazer predições dessas propriedades de moléculas que ainda não foram sintetizadas e eles são treinados, né, a partir de características de moléculas já conhecidas. Então, tu tens um grande banco de dados de propriedades de moléculas conhecidas, tu treina um modelo de inteligência artificial e ele é capaz de fazer predições de moléculas novas, das propriedades de moléculas novas. Então, a gente também pode usar pra fazer esse filtro pós-seleção de promissoras, se eles atendem essas propriedades esperadas.
Lidia: E é importante a gente destacar aqui, que o grupo de pesquisa da Karina ganhou um prêmio muito importante recentemente, que demonstrou a capacidade do sul global em desenvolver algoritmos pra buscar moléculas com potencial terapêutico.
Lívia: O desafio basicamente é criar algoritmos pra simular e identificar moléculas capazes de se ligar a uma proteína, essa identificação é baseada nas estruturas e características químicas, tanto das pequenas moléculas quanto da proteína-alvo.
Lidia: No caso dessa edição, que a equipe da Karina venceu, o alvo era uma proteína do vírus SArs-Cov2, lembra dele? A proteína do vírus causador da Covid-19. Por fim, os resultados apresentados pelos participantes são validados em laboratório, com moléculas e proteínas reais, pra avaliar quais equipes e algoritmos tiveram o melhor desempenho.
Karina Machado: Então, acho que é importante a gente destacar, nós éramos um único grupo que participava do Sul Global. Então, todos os outros grupos, eles são ou da Europa ou dos Estados Unidos ou do Canadá. E o segundo lugar mesmo é um grupo que são um consórcio de sete universidades americanas, que participam num grande projeto de um jogo, né, que chama Drugit. E esse jogo que foi utilizado pelos pesquisadores, né, como estratégia pra busca. Esse grupo foi o segundo colocado, no desafio. Então, foi um resultado bem importante assim pra gente, do grupo. Eh, que a gente ficou bem contente, eles não esperavam que fosse um grupo do Brasil e nem nós.
[vinheta oxigênio]
Lívia: É importante a gente lembrar aqui, que é muito difícil que os métodos computacionais substituam os testes experimentais. Os testes em laboratório e clínicos sempre serão necessários.
Karina Machado: Eu acho que o que acontece os algoritmos ainda não são capazes de prever tudo o que acontece numa bancada e depois também, muito menos ainda, num organismo, assim, numa pessoa, né?
Lidia: É exatamente isso que a Karina falou, não é possível simular completamente, usando a IA, como o organismo humano vai reagir aos fármacos, mesmo que os estudos da ciência da computação estejam avançando tão rápido.
Lívia: Outra preocupação que a gente deve ter no uso da IA, nesses casos, é a ética por trás dos dados.
Lidia: Os dados genômicos, por exemplo, que são utilizados em várias etapas do planejamento de fármacos, eles são gerados, na maioria das vezes, a partir de populações europeias ou estadunidenses, o que faz os dados ficarem enviesados ou distorcidos.
Karina Machado: Então, não tem uma amostra de toda a população. A gente não tem amostra de brasileiro nessa população. Tem um número muito pequeno, né? A gente tem essa iniciativa grande, que é muito boa aqui no Brasil de fazer esse mapeamento genético, por exemplo, da população brasileira, né, de vários locais diferentes, de várias origens, enfim. E isso vai nos mostrar um panorama genômico, que é o princípio do início de qualquer pesquisa de medicamento humano, né?
Lívia: Essa é uma preocupação que não pode ficar de fora das pesquisas de desenvolvimento de fármacos. Se nós vamos substituir os testes em humanos para utilizar máquinas e dados, é preciso pensar quais populações esses dados estão representando. Porque, se esses dados não representam toda a população, eles também não serão capazes de prever reações adversas de um medicamento em todas elas.
[música de transição]
Lidia: Recuperando questões específicas do nosso país, a Katlin explicou pra gente como as pesquisas baseadas em alvo no desenvolvimento de novos medicamentos podem auxiliar no tratamento de doenças negligenciadas, que são aquelas doenças causadas por parasitas ou agentes infecciosos, que afetam principalmente as populações de baixa renda, em países em desenvolvimento.
Lívia: Algumas doenças, como a doença de Chagas, a leishmaniose e a dengue, se manifestam especialmente em regiões com saneamento precário e alto índice de pobreza, como é o caso de algumas regiões do Brasil.
Lidia: E a Katlin falou quais são os motivos em desenvolver pesquisas pra descobertas de novos fármacos pra leishmaniose.
Katlin Massirer: Mas existe realmente um foco grande em doenças negligenciadas, por exemplo, a leishmaniose. Porque essas doenças causadas por parasitas, elas têm alguns medicamentos que ainda são muito tóxicos pros pacientes, dão efeito colateral e eles precisam ser tomados a longo prazo, então tem muita desistência de tratamento. Então, aqui nós procuramos desenvolver medicamentos que atinjam mais certeiramente o parasita e tenham menos impacto no corpo humano.
Lívia: Além de medicamentos pro tratamento do câncer e das doenças negligenciadas, o CQMED também tem desenvolvido pesquisas no tratamento de doenças neurológicas.
Lidia: Uma dessas buscas tem focado no tratamento do autismo, que é um transtorno do neurodesenvolvimento, caracterizado por alterações na comunicação social e no comportamento.
Katlin Massirer: Então, uma outra demanda que tem vindo da sociedade pra nós é uma atuação maior em avançar novos medicamentos que possam auxiliar nos transtornos do espectro autista.
Lívia: Eles têm entrado em contato com representantes do poder público, como vereadores e deputados, pra engajarem em uma maior assistência pros pacientes neurodivergentes.
Katlin Massirer: Então, nesse aspecto, várias pessoas do nosso grupo têm preparado material, dado palestras e tentando capturar recursos, que possam acelerar essa pesquisa.
Lidia: Além da importância na criação de fármacos que irão, futuramente, auxiliar no tratamento de doenças que afetam grande parte da população, as pesquisas desenvolvidas no CQMED também ajudam a entender o funcionamento dessas doenças.
Lívia: Ou seja, as pesquisas ajudam na compreensão do mecanismo biológico da doença, e o que, exatamente, está acontecendo dentro de cada célula. E mesmo que as moléculas desenvolvidas durante a pesquisa não se tornem medicamentos, elas servem como sondas químicas, que são ferramentas pra investigar a biologia da doença.
Lidia: Durante a pandemia da Covid-19, os pesquisadores também utilizaram os conhecimentos da equipe e a estrutura do laboratório pra atender uma outra demanda da sociedade.
Katlin Massirer: Então, nós conseguimos, no período de três meses, contatar uma parceria com um laboratório de diagnóstico que estava montando um teste de covid em saliva e nós conseguimos produzir proteínas para esses testes.
Lívia: Você deve se lembrar como foi importante a gente ter acesso aos testes de detecção do vírus da covid-19 na época da pandemia. O CQMED produziu reagentes pra um milhão de testes da covid-19, utilizando a estrutura de produção de proteínas do laboratório.
[música de transição]
Lidia: Bom, lembra da nossa pergunta lá no início? Será que você imaginava que pra descobrir um novo medicamento existia tantas etapas e tantas pessoas envolvidas?
Lívia: Pode ser que você não soubesse disso lá no começo do episódio, mas até aqui a gente conseguiu ter um panorama, de como funcionam as pesquisas iniciais na descoberta de um novo medicamento, quais são os tipos de técnicas disponíveis pra que isso aconteça, quais os diferentes profissionais estão envolvidos nesses processos e como a ciência da computação pode ajudar nesse trabalho.
Lidia: E é claro, sem esquecer de que essas pesquisas são desenvolvidas na universidade pública.
Katlin Massirer: E assim, a sociedade vai entender o que é que nós estamos fazendo dentro da universidade. Esse é o nosso principal papel na universidade pública.
Lívia: Isso quer dizer que a gente não pode esquecer que o financiamento dessas diversas etapas de pesquisa vem do poder público.
Katlin Massirer: E aí, dentro desse contexto, existe um financiamento para complementar o recurso que uma empresa porte. É uma instituição denominada Embrapii, é uma Associação Brasileira de Inovação Industrial. Pra cada projeto que nós fazemos com empresa, essa associação adiciona uma contrapartida em dinheiro pra que esse projeto aconteça, seja acelerado dentro da universidade, juntamente com a empresa. Então, existem várias fontes de financiamento.
Lidia: Então, o que a Katlin explicou, foi, que além do financiamento público, também existem parceiros como indústrias farmacêuticas e empresas startups que, em conjunto com a Embrapii, investem na relação entre pesquisa científica acadêmica e setor industrial, financiando a inovação e as descobertas de novas moléculas promissoras na criação de novos medicamentos.
[música final]
Lívia: Lembra lá do nosso exemplo do início, o capivasertibe, que é utilizado no tratamento do câncer de mama? O Inca, Instituto Nacional de Câncer, agora no mês do Outubro Rosa publicou um documento com alguns dados desse tipo de câncer no Brasil.
Lidia: Segundo o Inca, o câncer de mama é o que mais mata mulheres no Brasil. Esse ano foram registrados 73.610 novos casos.
Lívia: Daí a importância, seja com investimento público ou de iniciativas privadas, da pesquisa de cada um dos cientistas envolvidos nas diferentes etapas do desenvolvimento de um novo fármaco.
[créditos]
Lívia: O roteiro desse episódio foi escrito por mim e pelo Daniel Rangel, que também realizou as entrevistas e os trabalhos técnicos.
Lidia: A revisão foi feita por mim.
Lívia: Esse episódio faz parte do trabalho de divulgação científica que o Daniel Rangel desenvolve no CQMED da Unicamp financiado pelo projeto Mídia Ciência da FAPESP.
Lidia: Agradecemos à FAPESP pelo financiamento e à supervisora do trabalho, que também nos concedeu as entrevistas, a Katlin Massirer.
Lívia: A trilha sonora é da Biblioteca de Áudio do Youtube e a vinheta do Oxigênio foi produzida pelo Elias Mendez.
Lidia: O Oxigênio conta com apoio da Secretaria Executiva de Comunicação da Unicamp. Você encontra a gente no site oxigenio.comciencia.br, no Instagram e no Facebook, basta procurar por Oxigênio Podcast.
Lívia: Pra quem chegou até aqui, tomara que você tenha curtido passear pelos caminhos dos laboratórios, das moléculas e da criação de novos medicamentos! Você pode deixar um comentário, na sua plataforma de áudio favorita, contando o que achou. A gente vai adorar te ver por lá! Até mais e nos encontramos no próximo episódio.
[vinheta final]










