#102 – Temático: A física criativa de Dark
set 24, 2020

Compartilhar

Assine o Oxigênio

Este programa explora a construção dos conceitos científicos que são apresentados em Dark, uma aclamada série alemã de ficção, suspense e drama que está disponível no canal de filmes via streaming Netflix. Dark é muito conhecida pelo alto grau de complexidade do seu roteiro, que traz diversos elementos da física. Mas o que será que realmente é ciência por trás da série? Como é que os autores conseguem escrever uma história que envolve conceitos difíceis ligados de forma tão complexa? Quem vai ajudar as jornalistas Caroline Maia e Mariana Hafiz a responder essas perguntas, fazendo uma imersão ao universo de Dark são o físico Willian Abreu e o escritor de ficção científica Fábio Fernandes.  E aqui você tem o roteiro completo para acompanhar o programa. Seja bem vindo à física criativa de Dark, o episódio 102 do podcast Oxigênio. 

********************************

Willian: A própria série continuamente faz referências a artigos científicos, como por exemplo os artigos de F. Englert e R. Brout, de 1964 e do próprio Higgs, fazendo uma associação, uma menção rápida ao bóson de Higgs

Fábio: O roteiro é fundamental, porque como viagem no tempo é uma coisa que não existe, a gente pode brincar com teorias

Willian: Para que o bóson de Higgs fosse evidenciado, foi necessário a construção de um enorme acelerador de partículas na Europa, chamado LHC. Enfim, fica claro que não é possível que uma usina nuclear possa gerar isso.

Fábio: Na ficção, o importante é o que Rolland Barthes chamava de “efeito de real”: tem que provocar na pessoa – no leitor ou no espectador – a sensação de que aquilo ali é real ou poderia ser real

Willian: É realmente uma liberdade 100% artística e que não tem nenhuma relação com o que é de fato representado no universo.

Fábio: Usar só o artifício de botar a história no futuro não basta, tem que saber escrever a história mesmo. Saber como escrever a narrativa. E aí é uma coisa que não é ficção científica, é da literatura ou do roteiro.

 

Caroline: Dark é a primeira série original alemã da Netflix, de drama, suspense e ficção científica. Ela foi eleita a melhor série da Netflix, superando as famosas Stranger Things e Black Mirror. Com 3 temporadas, a série é reconhecida pelo enredo sombrio e super complicado que envolve viagem no tempo. A primeira temporada estreou em dezembro de 2017 e a terceira e última saiu mais cedo esse ano, em julho de 2020. 

Mariana: Por envolver viagem no tempo, a série faz várias menções a temas científicos de física. Inclusive o primeiro episódio já começa com uma fala de Albert Einstein sobre o significado de tempo. Mais especificamente, Dark aborda muitos conceitos de fissão nuclear, por conta de uma usina nuclear, que é central no enredo.

Caroline: Buracos negros, Ponte de Einstein-Rosen, O paradoxo de Bootstrap, Boson de Higgs…esses são alguns dos elementos da física que a série explora. Mas será que ‘essa ciência’ que a série mostra é real? As coisas que acontecem lá poderiam mesmo acontecer na realidade? E com essa complexidade toda envolvendo física e ficção científica, como é que os roteiristas constroem histórias como Dark? 

Mariana: Pra responder essas perguntas, entender melhor a física por trás de Dark e a construção do roteiro de séries como essa, o Oxigênio de hoje mergulha no universo dessa já premiada série. Eu sou a Mariana Hafiz.

Caroline: E eu sou a Caroline Maia. E começa agora o episódio 102, A física criativa de DARK.

Mariana: Em primeiro lugar, para construir um enredo complexo como o de Dark, o escritor de ficção científica precisa de muita imaginação. Como explica Fábio Fernandes, escritor do gênero, para escrever uma história assim o trabalho é semelhante ao de alguém que escreve uma ficção utilizando elementos históricos, só que com mais criatividade.

Fábio: O escritor de ficção científica tem o mesmo tipo de abordagem que um escritor de ficção histórica. O de ficção histórica trabalha com algo que já aconteceu; o escritor de ficção científica trabalha com uma ficção histórica que não aconteceu ainda ou que nunca vai acontecer, mas ele usa ferramentas semelhantes de pesquisa. Só que enquanto o historiador, o escritor de ficção histórica tem que ser historiador, ele tem que procurar livros pra pesquisar aquilo que aconteceu e preencher as lacunas do que a história não registrou, o escritor de ficção científica tá preenchendo as lacunas de tudo, praticamente. 

Caroline: E a complexidade da história apresentada em Dark liga diversos conceitos e ideias já explorados em outras histórias de ficção científica. Mas a série usa esses conceitos e ideias para contar uma história nova, intrigante e que vem fazendo muito sucesso por aí.

Mariana: Pra quem gosta do gênero de ficção científica, esse tipo de construção visto em Dark acaba sendo um prato cheio, porque traz referências a outras histórias famosas e amadas pelos fãs. 

Fábio: Eu gostei muito de Dark porque ela presta homenagem a vários livros de ficção científica, filmes e quadrinhos. Eu tenho um programa no meu canal do youtube, o ‘Terra Incógnita’, falando sobre isso, sobre algumas das referências e, mesmo assim, eu acho que eu falei de duas ou três. Na verdade, a história da ficção científica toda, ela vive do que a gente chama de ‘grande conversação’. Chega num momento da história da literatura em que você não consegue fazer nada de original em termos de conceitos. 

Caroline: E não são só referências a outras histórias da ficção científica que encontramos em Dark. A série também cita continuamente nomes de cientistas famosos, artigos científicos e termos da Física para explicar a origem dos eventos complexos que acontecem com os moradores de Winden, principalmente após um acidente na usina nuclear da cidade.

Mariana: Mas acontece que essas menções, apesar de darem uma aparência científica para a série, são geralmente apresentadas de forma distorcida. Conforme explica o físico Willian Abreu, é o caso da frase de Einstein (abre aspas) A diferença entre passado, presente e futuro é somente uma persistente ilusão (fecha aspas), que é citada no começo do primeiro episódio. Essa frase tava numa carta que Einstein mandou para consolar a família de um amigo que tinha falecido recentemente, o Michel Bersso.

Willian: É uma coisa muito importante que a gente precisa enfatizar, de que existe a diferença de um pesquisador, de uma pesquisadora citar alguma coisa, ou falar alguma coisa ou escrever alguma coisa dentro de um contexto acadêmico e fora da Academia. Essa frase, especificamente, foi escrita fora do contexto acadêmico, então ela não deve ser considerada como alguma coisa embasada dentro da ciência. Simplesmente foi retirada de uma carta que ele escreveu para a família do amigo dele. Ainda que tenha de fato uma menção direta com o que nós chamamos de CTCs.

Caroline: CTCs são as chamadas closed timeline curves, que dizem que, teoricamente, você pode viajar no espaço em uma curva fechada de tempo. 

Mariana: Ainda de acordo com o Willian, por causa de distorções como a do caso de Einstein, é preciso tomar cuidado com as interpretações sobre a ciência na série. 

Willian: É uma série de fato interessante, que cita artigos científicos que são importantíssimos meios de comunicação da academia, com os pares, apesar dela citar esses artigos, ela não se aprofunda. E a física, o desdobramento deles, a solução que eles dão para viagem no tempo não têm uma profundidade, não tem nenhum embasamento a partir desses artigos. Então é importante isso: apesar de eles terem citado esses artigos, o desdobramento na série ele não tem relação e não tem embasamento para existir de fato um túnel em que você pode viajar em 3 ciclos de 33 anos.

Caroline: Na série, a viagem no tempo acontece por meio de um buraco de minhoca que existe no túnel das cavernas de Winden. É por meio dele que os personagens conseguem viajar para 33 anos no passado ou 33 anos no futuro.  

Mariana: Toda a base de Dark é relacionada à viagem no tempo. É ela que une os acontecimentos da série. Viajar no tempo é algo que vem atraindo as pessoas há séculos, de forma que esse conceito já foi muito abordado nas histórias, mesmo antes do famoso escritor H.G Wells. Sobre isso, quem nos fala é o Fábio.

Fábio: Viagem no tempo é uma coisa que não é original desde antes do HG Wells. HG Wells faz a máquina do tempo em 1885, se eu não tô enganado, e ele fala dessa coisa do ‘vamos viajar no tempo com uma máquina’. Antes do Wells, você tinha viagens no tempo que não eram com máquinas, e é isso que torna a obra do Wells ficção científica. Mas o conceito de viagem no tempo já tava lá. As pessoas viajavam no tempo por sonhos, dormindo numa caverna e acordando 100 anos depois, né, essas coisas. Então, conceito de viagem no tempo já existia. 

Caroline: O conceito de viagem no tempo trazido pela série está ainda muito longe da nossa realidade, apesar da referência a esse ciclo de 33 anos ter ligação com a Astronomia e o uso de calendários por diferentes civilizações. No passado, civilizações antigas precisavam de um controle do tempo e por isso desenvolveram seus calendários com base no movimento aparente do sol – digo aparente porque quem gira em torno do Sol é a Terra – ou no ciclo da Lua. 

Mariana: No calendário solar temos os nossos aproximados 365 dias e no calendário lunar o ano tem 354 dias, então tem uma diferença de aproximadamente 11 dias entre os dois. Aqui entra a relação com a série porque quando você vai somando esses 11 dias por ano, ao completar 33 anos os dois calendários se coincidem.

Caroline: Então, essa questão dos 33 anos na série tem de fato alguma relação com a Astronomia. Mas a coincidência de calendários tem mais efeito em nós, humanos, em termos de crenças do que Astronomicamente falando. Assim, a realidade que é representada na série está muito distante da realidade que a gente vivencia de fato.

Fábio: A relação entre a física e a ficção científica em obras como Dark é muito pequena. O conceito de viagem no tempo é um conceito que a física de vez em quando trabalha, mas não existe nenhuma pesquisa séria sobre construção de máquina do tempo. A única pesquisa científica que eu conheço que pesquisa viagem no tempo, de maneira bem abstrata, é a pesquisa de buracos negros. Buracos negros são singularidades que sugam toda a matéria ao seu redor, inclusive a luz. Há um tempo atrás foi postulada a existência de buracos brancos, que ainda não foi comprovada. Então existiria uma espécie de túnel – buraco de minhoca – entre o buraco negro e o buraco branco onde a matéria entraria num buraco e sairia de outro. Esse é um conceito ainda teórico. Há uma possibilidade, que o buraco negro não transportaria só alguém ou alguma coisa no espaço, transportaria no tempo também. Só que, a única maneira de se comprovar isso seria viajando por um buraco negro e como ele é hiper denso, um ser humano, um ser vivo, não conseguiria viajar por ele. 

Mariana: O buraco de minhoca, do qual nos falou o Fábio, também é conhecido como ponte Einstein-Rosen, conforme mencionado por alguns personagens na série. O nome é uma referência a um artigo que foi realmente publicado por Albert Einstein e Nathan Rosen em 1935 na conceituada revista científica Physical Review. Nesse estudo, os dois pesquisadores de Princeton indicam que a teoria permitiria, de certa forma, a possibilidade da existência de uma ponte que liga dois pontos do espaço-tempo, como diz o Willian.

Willian: De fato, a teoria permite, tanto é que essas estruturas elas provêm de soluções dessas equações de campo de Einstein. Entretanto elas ainda não foram evidenciadas na ciência, tá. E os estudos que relacionam buracos de minhoca, que são essas deformações no espaço-tempo de forma a interligar dois pontos para que elas permanecessem estáveis, de forma a possibilitar alguém a atravessar essa região, exigiria uma coisa chamada matéria exótica que implicaria diversos problemas nos conceitos atuais da física. Então, resumindo: elas são estruturas hipotéticas que estão presentes na teoria, mas que para existirem no universo, elas implicam em grandes desafios para a compreensão da física moderna.

Caroline: Por isso que na ficção científica os escritores geralmente criam maneiras bem ficcionais de viajar no tempo, ‘tiradas da cartola’. Mas um escritor australiano chamado Greg Egan propôs uma história bem interessante com robôs, que teoricamente seria mais plausível na realidade se os buracos de minhoca realmente existirem.

Mariana: Os tais robôs da história seriam feitos de uma matéria extremamente flexível e densa ao mesmo tempo, o que permitiria que viajassem pelo buraco de minhoca sem serem danificados. O Fábio comenta como seria o movimento desses robôs, algo que ele vê como inédito nos contos de ficção.

Fábio: Eles entrariam no buraco negro e eles se esticariam, se tornariam robôs maleáveis, esticados quase ao infinito, pra eles poderem atravessar o buraco de minhoca sem serem destruídos pela pressão gravitacional. E é o único conto que eu conheço que alguém tentou fazer isso. E isso aí é interessantíssimo como proposta teórica conceitual. A relação entre a ficção científica e a ciência, quase sempre é de caráter conceitual. 

Caroline: Agora, como o buraco de minhoca foi formado no universo da série, no entanto, não é claramente explicado. O que sabemos é que houve um acidente na usina nuclear de Winden na década de 1980 e desse incidente acabou vazando material radioativo. Sabemos também que esse material radioativo foi armazenado em barris dentro das cavernas e na piscina desativada do reator. 

Mariana: A partir do que vazou do acidente, a série dá ênfase ao Césio 137, um elemento radioativo que no universo de Dark dá origem a uma esfera escura gigante, que eles associam ao bóson de Higgs, no singular. Para Willian, aí começa um dos principais erros científicos da série. 

Willian: O bóson de Higgs não é uma coisa macroscópica, gigante, então eles já fizeram essa associação equivocada e, além disso, eles associam o bóson de Higgs a buracos de minhoca. Então são coisas bastante distintas que são a fissão nuclear, bóson de Higgs e a viagem no tempo por meio dessas estruturas hipotéticas que são chamadas de buracos de minhoca. Inclusive, esse próprio material que vazou, que eles intensificam ao dizer que é o Césio-137, ele é o combustível utilizado naquelas máquinas, naqueles aparatos de viagem no tempo.

Caroline: O problema é que usinas nucleares funcionam a partir da fissão nuclear e não seria possível, na vida real, gerar buracos de minhoca e muito menos bósons de Higgs por meio dessa fissão. Seriam necessários anos… 

Mariana: Além disso, o bóson de Higgs só foi evidenciado décadas depois de ter sido previsto em teoria e, mesmo quando foi, ele era apenas um sinal nos gráficos nas telas dos cientistas do Large Hadron Collider, o LHC, que é um acelerador de partículas gigante na Suíça. Inclusive, para quem quiser ver a como essa descoberta realmente aconteceu na vida real em 2012 o documentário “Particle Fever”, ou “A febre das Partículas” em português, conta essa história e conta também um pouco dos bastidores de experimentos como esse. O Willian comentou sobre isso na entrevista que ele deu pra mim.

Willian: Em relação ao que ela é representada na série e o que acontece na vida real, são coisas completamente diferentes. A série representa o bóson de Higgs como uma esfera que se mantém estável e é algo macroscópico, então não tem nenhuma relação com o que de fato acontece na natureza. Para que o bóson de Higgs/campo de Higgs fosse evidenciado, foi necessário a construção de um aparato gigantesco e sensores extremamente sensíveis com muita energia, com uma complexidade gigantesca para que esse elemento fosse evidenciado. Então, ele não é uma estrutura macroscópica, não é, ele não vai surgir, você vai tropeçar, você vai abrir seu banheiro e vai encontrar a partícula de Deus te abençoando, isso não existe. Então realmente a série foge completamente do que é científico quando ela trata da questão do bóson de Higgs.

Caroline: Outro ponto de distorção da realidade é que pelo próprio funcionamento dos aceleradores de partículas, muito diferente do funcionamento de uma usina nuclear, o bóson ou o campo de Higgs não poderiam ter se originado por meio da fissão nuclear da usina, como aparece no contexto da série. Novamente o Willian esclarece por que não seria possível.

Willian: A usina nuclear você tem um elemento pesado radioativo, especificamente o urânio, um dos isótopos do urânio, o urânio-235, que a usina nuclear pega um nêutron e joga em direção ao núcleo desse átomo de urânio. Com esse choque desse nêutron com o núcleo desse urânio, acontece uma separação, ou seja, uma fissão desse átomo de urânio, gerando outros dois elementos mais leves. A soma da massa desses elementos mais leves não é igual à soma do urânio que gerou esses elementos, então falta um pouquinho de massa. Essa massa que foi “perdida”, mas não foi perdida, ela foi transformada em energia. E aí tem a relação com aquela famosa equação de Einstein, que é E=mcˆ2. Ou seja, uma pequena quantidade de massa é multiplicada pelo C, e o C é nada mais nada menos que a velocidade da luz ao quadrado, ou seja, a velocidade da luz é gigantesca e ainda assim ela é multiplicada ao quadrado. Então é por isso que uma usina de fissão nuclear gera tanta energia num lugar tão pequeno, porque ela fissiona um átomo grande, transformando em outros dois e gerando muita energia nesse processo. Um desses dois elementos que são gerados após a fissão é o césio-137, que é o elemento que conduz aí, de acordo com a série, todos esses acontecimentos.

Mariana: A série, então, acaba gerando essa espécie de ‘Frankenstein científico’, juntando várias esferas da ciência fora de contexto. 

Caroline: O que acontece é que a ficção científica geralmente faz esses tipos de ‘extrapolações mirabolantes’ a partir de conceitos científicos justamente para deixar a história mais interessante e atraente para o público. Se a história for muito ‘realista’, geralmente acaba se tornando sem graça, como exemplifica Fábio.

Fábio: Um exemplo que é o oposto exato de Dark é uma história chamada Primer, do cineasta independente americano chamado Shane Carruth. Esse filme, que não passou nem nos cinemas, é a história de dois rapazes numa garagem, dois cientistas, construindo uma máquina do tempo, mas a história não tem graça. É uma história interessante porque eles são dois engenheiros construindo uma máquina e o filme inteiro é sobre eles pensando, conversando na garagem, comprando peças, construindo peças, pra construir a máquina do tempo de acordo com o que eles desejam. E no final eles fazem uma experiência com uma partícula, eles não viajam no tempo, entendeu. Então não é uma história tipo ‘De volta para o Futuro’, nem tipo ‘Dark’. Aquilo ali é o mais próximo que poderia acontecer de verdade de uma pessoa construindo uma máquina do tempo. E você pode trabalhar com uma transmissão de uma partícula, porque aí você tem uma coisa chamada ‘emaranhamento quântico’, que permite que se teletransporte uma partícula subatômica. Isso já foi realizado. Eu falei que viagem no tempo é uma coisa teórica, pode ser que seja feita uma viagem de teletransporte ou uma viagem no tempo no futuro? Pode, só que a gente ainda não descobriu como fazer isso com pessoas e com objetos, é só com partículas subatômicas.

Mariana: E é por isso mesmo que a ficção apresentada em Dark, embora não seja quase nada realista, acaba deixando a história tão envolvente e interessante. Se a história fosse muito realista, dificilmente algo tão complexo como o que é apresentado ao longo dos episódios poderia ser desenvolvido.

Caroline: E essa complexidade do enredo traz uma possibilidade interessante, que é misturar outros conceitos além daqueles da física, que podem ser mais simples, mas que são explorados de forma mais profunda e questionadora. Inclusive conceitos importantes para a sociedade. O Fábio cita, por exemplo, os conceitos sobre família, que escritores do século 19 trataram em suas obras.

Fábio: A gente geralmente nos últimos tempos tem visto muita obra, mais simples. E simples aí não quer dizer simplista. É você pegar um conceito só e trabalha esse conceito de maneira mais direta, mais objetiva. A obra complexa geralmente é aquela que trabalha com vários conceitos. Dark, embora seja uma história de viagem no tempo, vai tratar de conceitos como família, que não é um conceito de ficção, mas é um conceito que é muito importante de discutir, né. Dostoiévski, Tolstói, são escritores que falam muito disso, das relações de família, né, das suas sociedades das suas respectivas épocas. E é muito interessante ver uma obra que faz essa ponte também com autores do século XIX pra colocar questões de família, ainda mais envolvendo da maneira que Dark fez.

Mariana: Nessa mistura entre ciência e ficção explorada pela série Dark, tem também várias menções à religião. Ao longo dos episódios, existem várias menções a Adão e Eva e o próprio bóson de Higgs  é chamado de “partícula de Deus” e parece ser utilizado para brincar com essas referências religiosas. 

Caroline: Esse termo já é bastante usado na vida real há algum tempo, mas com relação ao fato de que o bóson de Higgs é muito importante pra explicar a origem da massa de todas as outras partículas. Além disso, esse nome “partícula de Deus” surgiu por pressões editoriais quando em 1933 o cientista Leon Lederman escreveu o livro “The God Particle”. 

Willian: Em 1993 o Lederman foi escrever esse livro e o título que ele sugeriu do livro foi “The Goddamn Particle”, que é traduzindo “A maldita partícula”, porque ela era muito importante. Então, era crucial que ela fosse evidenciada o quanto antes para dar calma, para dar paz à toda a física moderna. Então, quando ele escreveu isso, os editores acharam melhor cortar o “The Goddamn” e colocaram “The God” então daí ficou, ‘partícula de Deus’. Então a intenção nunca foi endeusar ou elevar essa partícula como uma coisa celestial, mas como muitas coisas na ciência, esses nomes eles surgem de histórias completamente inusitadas. 

Mariana: Mas mesmo a relação entre a física e a ficção em Dark sendo muito pequena, os escritores e roteiristas das histórias de ficção científica buscam ter boa noção dos conceitos científicos para poder explorá-los de forma interessante, especialmente em histórias tão complexas como a da série.

Caroline: Pra isso é fundamental estudar os conceitos da ciência que a história pretende abordar ou mesmo aqueles que nem são o foco, mas que são importantes para a compreensão do enredo, como o conceito do gato de Schrödinger apresentado em Dark e do qual nos fala o Fábio.

Fábio: Pra fazer uma obra complexa de ficção científica como Dark, estudar e contar com especialistas basta. Na verdade não há outra saída. A outra saída seria vivenciar na prática, mas a gente não vivencia na prática os conceitos de viagem no tempo né. Estudar aí seria o seguinte: estudar roteiro e outras obras que tenham feito coisas parecidas. Pra você fazer uma história interessante, do jeito que fizeram em Dark, realmente a pessoa tem que entender alguma coisa de conceitos de ficção científica e até de conceitos científicos. E aí a gente lança mão desses conceitos de física também. Ele fala muito do conceito do gato do Schrödinger, por exemplo, que é um experimento científico que nem tem a ver com viagem no tempo, mas que eles conseguiram amarrar de maneira muito interessante pra tornar crível. 

Mariana: E não é só de ficção e ciência que o escritor de ficção científica precisa entender. É importante saber como abordar a história de forma interessante e bem amarrada, para parecer mais crível. E isso vale para outras histórias além de roteiros de filmes ou séries como Dark. 

Caroline: O Fábio, que lembramos que é um autor de ficção científica, diz que o escritor também precisa saber mostrar como os personagens realmente reagiriam na situação proposta na história, por exemplo. Para isso, precisa saber muito mais além da física. 

Fábio: A gente escreve uma obra complexa entendendo como se trabalha isso literariamente. Não precisa ser um roteiro, para escrever um conto também pode-se fazer assim, ou um romance. Mas é isso, não tem nenhum mistério. Por exemplo, eu posso escrever uma história sobre o século 25, mas vou escrever uma história com humanos. Então eu tenho que colocar ali os meus personagens com reações humanas. Então eu tenho que entender um pouco de psicologia, tenho que entender história e estrutura do romance também pra saber como é que eu articulo isso. Às vezes tem umas obras que você vai ler, mais antigas, que os personagens não são muito bem delineados, eles são ‘bidimensionais’, são ‘de papelão’, como a gente dizia antigamente. Isso significa que o escritor não fez uma pesquisa boa sobre literatura em geral. 

Mariana: O desenvolvimento da história em Dark a partir dos conceitos científicos abordados é realmente muito envolvente e instigante, com reações realmente humanas dos personagens…

Caroline: Então, Dark pode não ser muito realista a partir do que se conhece e que se espera da ciência na física, mas os conceitos abordados, mesmo de forma tão distante da possível realidade, trazem beleza para a série, não é Fábio?

Fábio: A ciência é usada como ponto de partida pra se contar uma história, uma fábula, né. E eu acho que isso torna a fábula mais bonita e mais elegante.   

Mariana: O Oxigênio vai ficando por aqui. O episódio foi apresentado por mim, Mariana Hafiz, e pela Caroline Maia. Nós também fizemos as entrevistas, escolhemos as trilhas e construímos o roteiro.

Caroline: As trilhas são da Youtube Audio Library e a revisão do roteiro é da professora Simone Pallone do Labjor. Os trabalhos técnicos são de Gustavo Campos e a edição de Octávio Augusto, da Rádio Unicamp.  E a divulgação do programa conta com a colaboração da Helena Nogueira.

Mariana: Você pode nos acompanhar nas redes sociais. Estamos no Facebook, (facebook.com/oxigenionoticias – tudo junto e sem acento), no Instagram (@radiooxigenio tudo junto) e no Twitter (@oxigenio_news).

Caroline: E você também pode deixar a sua opinião sobre este episódio e sugerir temas para os próximos programas. Basta deixar o seu comentário na plataforma de streaming que utiliza. Até a próxima!

Veja também

#151 – Dicionários temáticos: significados além das palavras

#151 – Dicionários temáticos: significados além das palavras

O episódio trata do papel de dois dicionários temáticos na divulgação ciência, promoção de debates e estímulo ao conhecimento. O Oxigênio entrevistou José Luiz Ratton, um dos organizadores do “Dicionário dos Negacionismos no Brasil”, e Sônia Corrêa e Rodrigo Borba, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, responsáveis pelo dicionário “Termos Ambíguos do Debate Político Atual”. Os verbetes dos dois dicionários foram produzidos por especialistas em diferentes áreas.

#148 – Como você se desloca na sua cidade?

#148 – Como você se desloca na sua cidade?

O deslocamento das pessoas pelos centros urbanos é sempre uma preocupação, não só para os cidadãos, mas para o poder público, que deve fornecer o melhor tipo de transporte para a população, sejam os ônibus, trens, metrô. Neste último episódio da série Cidades, o...

#147 – Veredas do Tietê

#147 – Veredas do Tietê

O episódio #147 trata de histórias e curiosidades do Tietê, esse importante rio que corta praticamente todo o estado de São Paulo e que tem uma presença marcante na capital paulista. Um rio que já serviu para nado, competições de remo, pesca, navegação, extração de pedras e areia para construção, esgoto, que é muito lembrado pela poluição, mas que em determinados trechos é limpo e ainda tem uso recreativo. 

#145 – Ocupação da cidade para o bem-estar

#145 – Ocupação da cidade para o bem-estar

Ocupar os espaços públicos é importante para garantir sua manutenção, segurança e melhorias. Fazer atividade física é fundamental para manter a saúde. Para algumas condições crônicas, como o diabetes, a prática de exercícios é ainda mais relevante. Então, juntar as duas coisas, ou seja, praticar atividade física visando a prevenção ou o tratamento do diabetes ao mesmo tempo em que se ocupa a cidade é o que fazem os entrevistados deste episódio.

# 143 – Aporofobia: Rechaço, preconceito e hostilidade ao pobre

# 143 – Aporofobia: Rechaço, preconceito e hostilidade ao pobre

Neste episódio a Fabíola Junqueira e a Fernanda Capuvilla falam sobre o significado da palavra Aporofobia na vida cotidiana de pessoas em situação de rua no espaço urbano. Elas conversaram com o padre Julio Lancellotti que constantemente denuncia espaços hostis, com o professor Raimundo Ferreira Rodrigues que já esteve em situação de rua e hoje é doutorando em educação pela Universidade Federal do Tocantins e com a arquiteta Débora Faria que pesquisou sobre arquitetura hostil em seu projeto de mestrado.

# 142 – Por trás da conta de luz: o futuro do setor elétrico – parte 2

# 142 – Por trás da conta de luz: o futuro do setor elétrico – parte 2

A energia elétrica no Brasil é cara. Nesta segunda parte do Episódio Por trás da Conta de luz, a meteorologista Alessandra Amaral fala como as crises hídricas são em parte responsáveis por essa conta, mas também porque falta estímulo à modernização do sistema elétrico nacional, o que inclui inovação tecnológica, investimento em energias renováveis e expansão das linhas de transmissão.

#141 – Os impactos das hidrelétricas na Amazônia

#141 – Os impactos das hidrelétricas na Amazônia

Você sabe quais podem ser os impactos da construção de uma usina hidrelétrica na região da Amazônia? Pois é, não são poucos e para esclarecer sobre esse tema, nós conversamos com alguns especialistas que nos mostraram como essa questão envolve estudos e análises de diferentes áreas das ciências e como está relacionada com o dia a dia de todos nós e com a vida de futuras gerações.